Um bar que se opõe ao fascismo

Clientes vêm e vão, mudam, gente chega, gente vai embora. Assim como a sociedade em que vivemos, o Bek’s também mudou

Parece até piada começar uma coluna falando em “viralizar” nestes tempos em que vivemos. Virais, tal qual o coronavírus, chamamos aquelas postagens internéticas que repercutem muito. Algumas, talhadas especificamente para isso, cumprem o papel de maneira forjada, inorgânica. Outras, muito mais despretensiosas e autênticas, como do morcego para sopa, da sopa para o cliente, do cliente para mundo, escapam e tomam a mesma rota de um vírus, espalhando-se descontroladamente. Aconteceu há pouco com a Giovanna Lima, herdeira do Bek ‘s Bar, fazendo com que uma de suas postagens alcançasse um nível muito maior de repercussão que o pretendido. Depois de ouvir sua história, acredito que a jovem empresária o tenha merecido porque, a partir de um ponto, para aquele que desceu o suficiente, só há uma direção a seguir, e essa só pode ser ascendente!

“Eu prefiro falir com dignidade do que ir contra os meus princípios” é uma das minhas frases favoritas do post-desabafo que viralizou no último mês. Escrito pela dona do bar, em resposta a tudo que ela vem passando desde que assumiu a dianteira do negócio. A mensagem não passou sem controvérsia. Críticas vieram dos que obviamente estão em desacordo com a nova realidade do estabelecimento, e disseram que a mesma “perdia um cliente” por se posicionar, como se posicionou, contra o presidente da República. Felizmente estes, aparentemente, foram suplantados por todo o apoio que tem recebido. “Eu percebi que não estou sozinha, que somos muitos e que tem muita gente que além de se identificar comigo, me admira. Eu percebi que Curitiba tem espaço para bar que se opõe ao fascismo. Eu percebi que tem gente que quer ouvir minha história. Ao invés de me ofender, as pessoas se aproximam pra elogiar. É como se eu tivesse transformado um tabu em totem. Desculpa, faço psicanálise. Aliás, grande mérito também é dela, Aline Letícia, um beijo e muito obrigada.”

A história do famoso e tradicional bar do Água Verde para os filhos do seu Jefferson, remonta desde o nascimento deles, mas ganhou novos contornos com o falecimento de seu fundador. “Meu pai adoeceu fortemente em 2018 e meu irmão tomou conta do bar junto com ele. Após seu falecimento, ele ficou por 3 meses dando continuidade pelo meu pai, porém a hostilidade do público masculino de uma maneira geral, acabou fazendo com que ele perdesse a vontade. Ele não queria ficar doente por causa do bar como nosso pai ficou, estava exausto e então um dia ele me disse: ‘não aguento mais, ou você fica com o bar ou ele fecha’. Eu não tive coragem de deixar o Bek’s, pensava sobre a devoção do meu pai por aquele boteco. Algo em mim me dizia que ele ficaria orgulhoso se eu tentasse. Aceitei com muito medo e com muita coragem também.”

Disposta a aumentar seu conhecimento na prática, Giovanna se lançou na nova carreira. Ela que é escritora e jornalista, na época era bolsista na UFPR, revisava artigos científicos e também fazia freelas de redação. “Sabia que meu tio Jocimar, que trabalha no Bek’s há 27 anos e hoje é meu gerente, estaria ao meu lado e me daria suporte nas dúvidas operacionais e em relação a hábitos de consumo. Além de ter crescido no Bek’s, eu já havia feito umas taxas lá no bar pro meu pai, então eu já sabia como eram alguns movimentos lá dentro. Faltava prática, faltava treino e a possibilidade de prosperar ali acabou me dando motivação.”

É claro que nem tudo são flores e na trajetória do Bek’s não poderia ser diferente. Munida de um estudo, expectativas e experiências, uma análise sobre as mazelas do bar e disposta em melhorar seus serviços, Giovanna, mergulha nos negócios em fevereiro de 2020. “Quando eu comecei a entender que eu não estava simplesmente brincando de bar meu coração acelerou e eu resolvi me entregar ao Bek’s.”

Porém, logo no seu primeiro dia, a recém empresária é surpreendida pela realidade da situação em que se encontrava o bar, através de uma visita da vigilância sanitária. “Sabia que meu pai tinha procrastinado muita coisa. Eu tive só um mês para atualizar coisas que não tinham sido mexidas em 40 anos e era impossível que eu conseguisse resolver tudo. Aquele dia foi pesado demais. Eu chorei abraçada com a mulher da vigilância e tentei explicar que era meu primeiro dia de trabalho. Que meu pai estava com câncer nos últimos dois anos, que a gente corria entre hospital, quimioterapia e internações.” Como se não bastasse, um mês depois, entramos na pior crise sanitária que já vivemos, a pandemia do novo coronavírus, e os problemas se intensificaram.”

A constituição do alvará, que lhe proibia de funcionar durante os períodos de restrição de atividades, além do bar não ter qualquer prática com delivery, fizeram com que o estabelecimento afundasse em dificuldades, dívidas e tristes racionamentos de pessoal. “Para tentar não perder todo o lucro, criei o delivery. A ideia já havia sido sugerida muitas vezes, inclusive por mim e pelo meu irmão, mas a impressão que eu tinha era que meu pai estava tão saturado dos problemas do Bek’s que não queria mais um. Começamos o delivery, mas as vendas não passavam de 10, às vezes nem de 5 por dia. Teve dias em que zeramos. Entramos no Ifood e a situação não mudou. Tive que tomar uma decisão difícil nessa hora e optei por desligar dois funcionários para tentar algum fôlego financeiro. Usei muito do meu orçamento pessoal pra tentar manter as contas em dia. Depois fiz um empréstimo. Depois outro empréstimo. Mesmo quando saiu a matéria do Plural, ainda continuávamos assim, naufragando. Eu com ansiedade, insônia, gastrite, depressão, aumentando as sessões de análise para três na semana. É doído lembrar.”

Herança é a transmissão de algo para alguém por sucessão. Pode ser subjetivo e positivo, como no caso de um legado ou objetivo e negativo como um fardo financeiro. Importa que é sempre involuntária, depende da decisão ou situação de outrem para que alguém acabe por receber sua fortuna, e aqui não quero dizer dinheiro. Giovanna, após mais de um ano de luta atrás do balcão de um bar de portas fechadas, consegue, depois da aprovação do projeto de lei que permitiu a bares, casas de festas e boates abrissem como restaurantes e lanchonetes, reabrir o tradicional bar do Água Verde para um desagradável encontro com suas herdades.

O boteco é por definição popular e público. Dito isso, tal qual sua clientela, é natural que seu ambiente mude, evolua. Clientes vêm e vão, mudam, gente chega, gente vai embora. Assim como a sociedade em que vivemos, o Bek’s também mudou. Mas há quem resista. Há quem viva sob um manto de ilusão sobre um passado melhor que nunca existiu. Há quem queira que nada mude, por inadequação ou canalhice. Todos sabemos identificá-lo: é aquele mal acabado, tosco, aquele da bravata, aquele da toxicidade dos argumentos, aquele da visão totalitária mas ao mesmo tempo restrita pela pobreza particular, aquele que ressente a própria sorte, culpando o outro por seus infortúnios. Aquele da misoginia forçada, da homofobia explícita, aquele que detém privilégios mas que resiste em enxergá-los. Aquele que, gestado em décadas passadas, se recusa a encarar sua própria obsolescência, causada por sua própria ignorância. Aquele com quem Giovanna vem se encontrando há muitos anos.

“Abrimos no dia 24 de junho de 2021. Recebemos alguns conhecidos, esse pessoal que herdei do meu pai. Entre toda essa mudança de decreto abrimos algumas vezes, com esses mesmos ‘herdeiros’ frequentando. Na quinta houve um movimento médio, mas esses clientes insistindo em me diminuírem, pelo meu gênero, pela minha orientação sexual, pelo meu posicionamento político. Eu estava aguentando aquilo há mais de um ano. Desde que assumi o Bek’s, eu sabia que eu não me identificava com aquele público conservador, autoritário, machista, misógino, defensor da ditadura, apoiador do Bolsonaro. Homem que faz piada com mulher, com preto, com gay. Eu queria servir gente que pensasse igual a mim, não gente que me humilhava. Eu saía nos fundos do bar pra chorar. Eu pensava todo dia em desistir, não porque o bar estava economicamente fodido, mas porque aquele público não me tratava como gente. Então, daí na quinta mesmo, primeiro dia do bar aberto, eu recebi três tipos diferentes de provocações, em menos de uma hora, o que me gerou uma quarta crise de pânico no dia e então pensei: ou essa gente para de vir aqui, ou eu desisto. Aí fui lá e escrevi aquela nota, que acabou repercutindo.”

Giovanna provoca e reage. Reage à opressão de quem testemunhou as entranhas de um Brasil tosco, confessado aos balcões do bar do seu pai desde sua tenra idade. Reage a um Brasil cheio de preconceitos e ultrapassado, revivido e jogado nas nossas caras nos dias sinistros em que vivemos. Reage às injustiças que observou professadas pelos clientes que vieram como parte de uma herança que tenta honrar. Ao mesmo tempo, Giovanna provoca com os limites que impõe. Não é uma questão de oportunidade dada pelos clientes para que ela se reinvente, é ela quem dá a oportunidade aos clientes do bar de se reinventarem. Alguns ficarão para trás, outros fingirão civilidade e uns tantos se encontrarão, formando a nova geração de clientes que acompanham o tempo em que estão inseridos, na difícil batalha que está sendo resistir e persistir na retomada civilizatória do país!

“Na segunda, a primeira mulher que entrou lá, Angelita, minha amiga, gritou FOGO NOS FASCISTAS. Você tem ideia da diferença? O público que eu sempre quis dentro do meu bar começou a chegar. Eles querem me conhecer, eles dizem que imaginam o que eu passo, eles me dizem que sou corajosa, até me pediram foto esses dias. Ser reconhecida e valorizada pelo que eu sou, mulher, lésbica, dona de bar, de esquerda e de coragem é uma sensação inexplicável. É como se estivesse se abrindo uma porta cheia de cadeados que parecia que eu nunca teria as chaves.”

A escuridão do racional é o convencimento arrogante de que tudo fora do que se conhece não precisa existir. Por isso, qualquer pensamento transcendente precisa ser descartado, desobrigando a pessoa ao questionamento próprio. O que nos salva é a disposição de se aprender o que não se sabe. Essa é a fé na possibilidade de transformação humana. A nova dona do tradicional Bek’s Bar acaba de fazer o convite publicamente!

E #forabolsonaro!

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