Rafael Greca e as canções de pirataria

Na terça-feira, 15, o prefeito Rafael Greca (DEM) reconheceu oficialmente aquela que talvez seja a maior lenda urbana da cidade. Ela diz que o último dos capitães piratas, chamado Zulmiro, morreu em Curitiba, num casebre onde hoje é o bairro do Pilarzinho, em 1889.

Bem ao seu estilo, o prefeito prometeu inclusive mandar fazer uma estátua em homenagem ao saqueador dos mares. A cerimônia aconteceu no Memorial de Curitiba, para uma plateia de centenas de crianças de escolas municipais.

Para isso, Greca se baseou no trabalho do economista e historiador diletante Marcos Juliano Ofenbok, que por 15 anos investigou a lenda de Zulmiro, apurou documentos e chegou à cronologia que consta no livro “A verdadeira ilha do tesouro – As crônicas do pirata Zulmiro” (2019).

Segundo Ofenbok, Zulmiro nasceu em 1798, na cidade de Cork, na Irlanda, como Francis Hodder. De família abastada, estudou no aristocrático Etton College, fundado pelo rei Henrique VI.

Posteriormente, se alistou na Marinha Britânica, onde acabou por assassinar um oficial. Para não ser submetido à corte marcial, desertou e se juntou a um navio negreiro, no porto da Flórida – primeiro como imediato, depois como comandante.

Por fim, hasteou a bandeira negra da pirataria, assumiu o nome de Zulmiro e promoveu espetaculares saques no Atlântico Sul. O maior deles, o de um navio espanhol que levava o tesouro roubado da Catedral de Lima, no Peru. O fruto dessa pilhagem teria sido enterrado na Ilha de Trindade, no litoral do Espírito Santo.

Depois disso, Zulmiro foi capturado por uma embarcação inglesa. O comandante, no entanto, havia sido seu colega na academia naval britânica, e ajudou o pirata a simular uma fuga no litoral do Paraná. Zulmiro subiu a pé a Serra do Mar e se instalou na vila que posteriormente se tornou Curitiba, onde viveu isolado por 40 anos, com o nome de João Francisco Inglez.

Morreu em 1889. A prova? Ofenbok encontrou nos registros do Cemitério Municipal do São Francisco o nome de João Francisco Inglez no livro de sepultamentos daquele ano. Também descobriu um edital de venda de terrenos publicado em 1921 pelo jornal A República, no qual consta uma área em nome do então ex-pirata.

Antes de abotoar o paletó de madeira, no entanto, João Francisco Inglez contou sua história para outro britânico que andava por essas bandas, Edward Stammers.

Quando o amigo morreu, Stammers publicou cartas no Jornal do Brasil, nas quais também falava do tesouro enterrado na Ilha de Trindade. Consta que foi assassinado por aproveitadores atrás do mapa. O tesouro nunca foi encontrado.

Esse é o relato, em linhas gerais. E com muitos furos, diga-se. Ofenbok obviamente se empenhou para investigar a lenda – foram 15 anos, afinal –, mas não será nem a primeira nem a última vez em que o mundo deixará de recompensar os esforços de alguém.

Há alguns meses, eu também me interessei por essa história, por conta das aparições de Ofenbok na imprensa local. Enviei os relatos e alguns documentos para o professor da Universidade de São Carlos (UFSCar) Jean Marcel Carvalho França, historiador e especialista nos assuntos dos viajantes e piratas coloniais. Ele é também autor do livro “Piratas no Brasil – As incríveis histórias dos ladrões dos mares que pilharam nosso litoral”.

O professor torceu o nariz para tudo desde o começo, e quanto mais conversávamos – por email – mais ele desconfiava.

Segundo França, o primeiro problema que existe na história é de cronologia: a pirataria inglesa na região descrita por Ofenbok foi comum da segunda metade do  século 17 até a primeira metade do século 18 (1650-1750). Portanto, quando Francis Hodder nasceu em Cork, na Irlanda, em 1798, não há mais registros históricos dela.

Em seguida, a transição de um comandante de navio negreiro para a pirataria pareceu estranha ao professor. “Traficantes de escravos e piratas raramente se misturavam”, contou.

E o fato de existir um João Francisco Inglez enterrado em Curitiba? “Pode ser um inglês qualquer, pode ser um nacional que se vendia como inglês, pode ser um nacional filho de um inglês, são muitas as possibilidades.”

O saque ao suposto tesouro da Catedral de Lima também fez França arquear uma sobrancelha. “É uma história meio lendária, ao que parece contada de diferentes modos. Há ambientações no século XVII, XVIII e XIX. Parece que é somente isso mesmo, uma lenda, uma história de porto e de navegadores que ganhou diferentes versões ao longo do tempo.”

No fim, é como diz o jornalista de “O homem que matou o facínora”, o clássico western de John Ford: “Quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda”.

Ou ergue-se uma estátua de pirata, tanto faz.

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