A Etiópia e seus problemas

Hailé Selassié reinou sobre a Etiópia por 44 anos, de 1930 a 1974. Longe dali, na Jamaica, era considerado a encarnação de Deus. Isso porque o pessoal do movimento rastafari viu nas notícias de sua ascensão ao trono o cumprimento de uma antiga profecia.

Para os jamaicanos negros e miseráveis, Selassié era o Rei dos Reis, o Escolhido de Deus, o Leão de Judá. Eles acreditavam que o imperador que reinava a 13 mil quilômetros dali os libertaria da fome no Caribe e os levaria de volta à África.

Pessoas acreditam em coisas inacreditáveis, na Jamaica dos anos 30 ou no Brasil de 2019. E a ignorância da miséria é um bom terreno onde grassam as fábulas mais estapafúrdias.

Enquanto isso, os etíopes eram obrigados a viver com os dois pés fincados nessa coisa inconveniente chamada realidade.

Logo no início de seu reinado, Hailé Selassié encomendou a primeira Constituição escrita da história da Etiópia. E, como não era homem de perder a viagem, aproveitou o embalo para restringir as funções do parlamento e concentrar todo o poder em suas mãos e na de seus descendentes.

Obviamente, ele não era a reencarnação de Jah, como queriam os jamaicanos; era um governante vaidoso, autoritário, corrupto, de miolo meio mole e com muito sangue nas mãos.

Os bastidores de seu palácio estão descritos em “O Imperador”, livro que o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski – eu te desafio a pronunciar esse nome em uma mesa de bar depois da meia-noite – escreveu quando Selassié foi finalmente deposto e preso, por uma junta militar, em 1974, depois de ter ajudado a transformar sua nação em uma das mais desgraçadas do planeta.

Para compor o relato, Kapuscinski entrevistou às escondidas ex-funcionários do palácio, gente que por anos havia convivido com as extravagâncias e impulsos do imperador.

Por exemplo, o homem que por uma década tivera como única tarefa secar a urina do cachorro real nos sapatos dos dignitários do imperador. É que Selassié era muito apegado ao cão, e proibia absolutamente que qualquer pessoa sequer se mexesse quando o cachorro decidia usá-la como poste.

Ou aquele que tinha como exclusiva função abrir uma única porta do palácio, no momento exato, sempre que o imperador passasse por lá. “Caso eu a abrisse cedo demais, poderia dar a impressão (sujeita a severo castigo) de que eu estava apressando o imperador a deixar o salão”, explica no livro o funcionário. “Por outro lado, se eu abrisse a porta demasiadamente tarde, o sublime senhor seria obrigado a diminuir o passo, ou até mesmo a parar, o que seria uma afronta à sua dignidade, a qual pressupõe movimentos livres de qualquer obstáculo.”

Selassié era extremamente detalhista em questões financeiras. Por capricho, determinou que em toda nação qualquer despesa acima de dez dólares precisava ser aprovada pessoalmente por ele. Era o imperador que determinava se um cano furado devia ser trocado ou se poderiam ser comprados novos lençóis para um hotel.

Como todo homem autoritário, Selassié era também um paranoico. À mais remota sombra de deslealdade, respondia com medidas drásticas. Ele estranhou, por exemplo, quando o líder da guerrilha etíope contra Mussolini recusou suas benesses e privilégios. Acalmou-se prendendo o líder por anos e encontrou a paz definitiva quando mandou decapitá-lo.

No início de seu reinado, num rompante de magnanimidade, havia abolido as penas de amputação de pernas e braços para pequenos delitos e também a tradição de que um acusado de homicídio fosse esquartejado pelo membro mais próximo da família da vítima.

Em vez disso, o imperador instituiu a profissão de carrasco, estabeleceu locais próprios para as execuções e determinou que as sentenças fossem levadas a cabo com armas de fogo.

Em 1973, a Etiópia teve uma de suas piores crises de fome, que matou cerca de 200 mil pessoas à míngua. Quando a comunidade internacional finalmente resolveu entrar no jogo e tentar ajudar aquela gente, Selassié barrou as doações. Ele queria reforçar o Tesouro nacional e exigiu que impostos fossem pagos sobre tudo que entrasse no país. As palavras do seu então ministro das Finanças são exemplares: “Se vocês querem ajudar, podem fazer, mas devem pagar. Afinal, que ajuda é essa, na qual o império não ganha nada?”

Esse era o mundo de Hailé Salassié. Deus libertador para uns, tirano de fato. E por que estou falando dele? Porque o livro de Ryszard Kapuscinski é a perturbadora história do que acontece a um povo quando um homem vaidoso, autoritário, corrupto e com o miolo meio mole, com gosto pelo sangue, assume poderes, demasiados poderes.

Aqui no Brasil, nas atuais circunstâncias e com as coisas se encaminhando como parece que vão se encaminhar, achei que vocês gostariam de saber.

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