A Casa de Flores

Naquela época, se eu não tivesse me mudado, possivelmente jamais teria posto os olhos na Casa de Flores. No mundo, há muitas coisas em que jamais colocaremos os olhos, e esse é um pensamento melancólico.

Mas ela estaria lá do mesmo jeito: uma velha construçãozinha de madeira um tanto fora de esquadro, as tábuas já apodrecidas nas extremidades e toda a sorte de flores saindo por duas janelas mal-ajambradas. Uma floricultura carcomida apertada entre casas comerciais grã-finas, envidraçadas, semelhantes àquelas ilustrações de colônias humanas na lua que vemos em revistas científicas, de frente para uma rua movimentada, com seus carros, ônibus e pedestres. Em resumo, todo aquele aço, concreto, asfalto e fumaça, a obra de engenheiros e planejadores urbanos que pareciam muito certos do que faziam.

A primeira vez que vi a Casa de Flores foi do ônibus, que seguiu apressado pela Anita Garibaldi. Vi de relance, um golpe de vista através da janela, e meu primeiro pensamento foi o conto de Truman Capote em que ele descreve um amor louco na América Central – um amor que se desenrola, vejam só, numa casa de flores. Nos outros dias, passando outras tantas vezes pela floricultura feiosa, recuperei outra memória afetiva literária: a poesia de Drummond sobre a flor desenxabida que teima em crescer no meio da náusea urbana.

Pois lá estava a Casa de Flores, poesia pura: uma pequena floricultura de madeira caindo aos pedaços com rosas, margaridas e um porrilhão de outras flores que meu olhar destreinado é incapaz de identificar saindo por toda parte; nos arredores, centros de estética, escritórios e fast-foods, como se a Casa de Flores tivesse, tal qual a flor de Drummond, rompido o asfalto e o concreto para aparecer, meio cabisbaixa, para o mundo – uma pincelada de lirismo num quadro exacerbadamente realista.

“Quem teria colocado ali a Casa de Flores?”, perguntei-me, enquanto o ônibus parava num sinal vermelho e eu ganhava mais alguns momentos em frente àquela obra da delicadeza subversiva.

Uma intervenção urbana involuntária, concluí: alguém, muito tempo atrás, monta uma modesta floricultura, possivelmente uma velhinha simpática que vende rosas a rapazes apalermados por um amor qualquer – rosas que talvez tenham resultado em casamentos ou em buquês atirados contra rostos. O tempo passa, o progresso vem e a Casa de Flores vai ficando espremida pela grande massa urbana. Resiste, no entanto. Talvez a velhinha tenha morrido, a Casa de Flores ficado para a neta, um negócio já em decadência mas ainda precariamente mantido por outros rapazes apalermados – é que sempre existirão no mundo rapazes portando-se de maneira meio sonsa quando cruzam com um amor biruta.

Mas a Casa de Flores, quero crer, era mais do que isso – como a flor de Drummond. Talvez ela pudesse, inclusive, nos desculpar por tudo, nos redimir – a redenção, enfim; uma redenção pequena, do nosso tamanho, mas uma redenção de qualquer forma.

Suponhamos que Deus ou um alienígena que tivesse nos monitorado por séculos viesse à Terra tirar satisfações, cobrar contas. O ser esquisitão (tenho todos os motivos para crer que Deus é um ser esquisitão) desceria de sua nuvem ou espaçonave e diria:

– Muito bem, muito bem. Agora vamos ver o que vocês fizeram.

Não ia dar pra esconder muita coisa; precisaríamos falar da escravidão, da fome, da guerra, da peste; da vilania e da crueldade que parecem incrustradas na nossa natureza; da Inquisição, de Hitler, de Stálin, de Hiroshima e Pol Pot; das ditaduras da América Latina – de Jair Bolsonaro. E, com um olhar envergonhado e desgostoso, apontaríamos hoje as nossas periferias, morredouros de almas. Estaríamos bem encrencados.

– O melhor que puderam fazer?, perguntaria o ser esquisitão.

E alguém, decerto, argumentaria:

– Veja bem, há também uma casa de flores, no meio desta rua. Quem sabe não gostaria de dar uma olhada? Sim, sim, compreendo, talvez isso não nos desculpe, mas há um peso simbólico, convenhamos. Os símbolos têm força. Alguém capaz de fazer uma casa de flores não deve ser de todo desprezado. É uma quebra de paradigma. Podemos melhorar. Que tal nos dar mais uns dois ou três séculos?

Poderíamos, inclusive, tirar uma rosa e prendê-la na lapela do ser esquisitão – que então nos dirigiria aquele olhar de piedade que costumamos oferecer aos doidos varridos.

E quem sabe ele nos desse uma segunda chance – para consertar as coisas.

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