Todos os nomes levam ao mar

– Para qual praia nós vamos?

Rute faz a pergunta só por perguntar. Está ao meu lado no carro, abraçada aos joelhos. Seu chapéu castanho de gângster, circundado por uma fita preta, os fartos cabelos negros e os pequenos óculos escuros de aro redondo lhe dão um ar de artista hipster, que ela costuma evitar. É um chapéu dos seus tempos de Chapitô, a escola de artes em que “todos eram excêntricos por fora”, como ela alfinetou algumas vezes.

Mas hoje cedo esqueceu o preconceito, vestiu o chapéu. Pôs os óculos vintage, tirou do armário uma tote bag abandonada. Olhou-se no espelho com ironia maternal, como se encontrasse uma amiga mais jovem. Gostei de vê-la incorporar todos aqueles clichês de juventude descolada. Era como se decretasseque, neste domingo, estamos livres de censuras e autocensuras. Podemos ser o que quisermos.

Para qual praia vamos, pensei. Fonte da Telha, São João, Morena, Cabana do Pescador, Mata, Castelo, Sereia… As praias da Costa da Caparica têm muitos nomes, mas todos eles desembocam no mesmo mar. Todos levam à mesma faixa de areia macia cor de osso, que as águas verdes lambem sem pressa, como se dissolvessem os nomes todos da terra.

– Vou entrar na próxima, digo, vendo a fila de automóveis se adensar à minha frente.

Quando saímos do asfalto para pegar a estradinha de terra, os dois leem em silêncio o nome que surge numa placa.

Mais tarde, deitados na areia sob o guarda-sol, olhamos o intenso movimento dos banhistas. Parece que toda Grande Lisboa veio para a praia. Pudera, faz 38 graus, e milagrosamente não venta no mar aberto da Costa. Apesar de preferirmos praias vazias, percebo que, como eu, Rute agora não se importa com a muvuca. Crianças dão gritinhos líquidos que se perdem na vastidão azul, jovens e velhos jogam frescobol, futebol, vôlei, há guarda-sóis por todos os lados, famílias com mil apetrechos para passar o dia, gordos e magros, negros e brancos, nativos e estrangeiros, sóbrios e bêbados, corpos perfeitos e carnes flácidas, grupos frenéticos de adolescentes, namorados polvilhados de areia. Mas o excesso de gente e informação não nos incomoda nem um pouco. Hoje, pelo menos hoje, por algum motivo, nos sentimos parte disso tudo. Talvez o chapéu de Rute nos proteja de nos defendermos de tudo, como um antichapéu que afaste as sombras. Mesmo quando ela diz “aquela rapariga vai e volta da água como se estivesse no trabalho”, ou quando observo que o velho aposentado talvez esteja morto em sua cadeira, nossos risos são complacentes.

Perto de nós, um garoto com uma mecha oxigenada na franja começa a cavar a areia.

Abro o Lazarilho de Tormes, que sempre quis ler num dia tranquilo, propício à viagem no tempo. Rute resolve dar um mergulho, toca meu ombro e se afasta. Viajo com o Lazarilho pela Espanha quinhentista, consumida pela cobiça e pela miséria. Primeiro, vamos a serviço de um cego cruel, depois, de um padre avarento. Vejo ao longe a silhueta de Rute entre muitas outras, no mar faiscante. A cabeça do Lazarilho é jogada pelo cego contra um touro de pedra, o padre quase o mata de fome; nada espanta o narrador, coisas vergonhosas são contadas como se tivessem que ser assim. Mas as palavras, aos poucos, começam a ficar embaçadas. Uma pergunta, ou melhor, o vulto de uma pergunta me torna confuso, disperso. Parece vir do que pulsa à minha volta.

O garoto da mecha oxigenada faz um navio de areia. A embarcação nasce devagar de suas mãos imaginosas. Largo o livro e só então a pergunta, como uma onda, cresce de si mesma, irrompe.

– Por que todo mundo muda quando vem para a praia?

Me ajeito na toalha, melhoro a frase:

– Por que todo mundo muda quando vem para a praia? Por que de repente a gente se liberta de tudo que aprisiona, roupa, sapato, classe social, parede, pressa, carro, poder, vergonha? Todos de repente ficam quase nus. Todos de repente ocupam o mesmo espaço, sem muros ou linhas imaginárias, e como num passe de mágica qualquer um pode se sentar no chão, beber no bico da garrafa, comer com as mãos, rolar na areia, tomar banho coletivo. Agora você pode brincar com os velhos e com as crianças, mijar na água, parar para observar qualquer coisa, ninguém vai desconfiar. Pode correr atrás do guarda-sol alheio, devolver a bola extraviada. Pode abrir os olhos para ver os peixes, as bundas, as nuvens, passar a mão na barriga do outro. E depois, se você se cansar de tanta liberdade, pode dormir boquiaberto, estirado numa toalha no meio de todo mundo, tendo por telhado apenas o céu…

Por que só deixamos nossas armas na fronteira da praia, Lazarilho de Dios? Se esse é o melhor dos mundos, que mania é essa de viver no pior?

O guincho irônico de uma gaivota parece vir em resposta. A liberdade é demais para nós, sugere ela, não sabemos o que fazer, não por muito tempo. Tanta velhacaria, exploração, arrogância, egoísmo, preconceito, desde sempre, de Jericó a Lisboa, tanto sofrimento e solidão – para quê?

A gaivota conclui:

– Para nada…! Para nada…!

Rute volta pingando da praia, senta-se ao meu lado, esbaforida. Lembro que a água da Costa é muito fria.

– O que é que estás a ler?

Me vem a resposta usual dela, quando quero saber como vão as coisas:

– The same old story.

– Não gostaste?

– Estou gostando. Muito.

Ela sai da sombra para o sol.

– Se todas as histórias são a mesma, por que gostamos de lê-las?

– Não faço a mínima ideia.

– Nem eu. Queres tomar um banho comigo?

Largo o livro na toalha, tiro os óculos. Caminho ao lado de Rute em direção à água. O barco de areia está pronto, o menino caminha à sua volta sem saber o que fazer com ele. Reparo que o velho aposentado, afinal, está vivo, conversa com a mulher. Esta esfrega as mãos depois de comer alguma coisa, passa a língua pelos dentes e diz:

– Precisava de a ver outra vez. A Maria João… Há muitos anos que não me sai da cabeça.

Maria, penso. Pedro, Sofia, Vera, Jorge, Manoel. O que nos separa, no fundo, se não o triste espelho de Narciso? Por dentro de um nome viajam todos os nomes, em viva urdidura – é preciso não esquecer disso. É preciso não esquecer que todos os nomes levam ao mar. Que somos, e já não somos, e sempre seremos o mar.

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