Saudades da terra

Foi numa madrugada quente e insone, uns cinco anos atrás, que o vídeo apareceu na tela do meu computador, sugerido por obra de uma dessas bruxarias insondáveis dos tais algoritmos. Assim que dei o play, subitamente, apareceu um Lima Duarte expressivo, falando com a coloquialidade de quem está em uma prosa de varanda. Dizia que, cá no Brasil, migramos aqui dentro, de um estado para o outro. “Por isso, existe isso, de ter saudade da terra, estando na terra”, expôs. Por fim, arrematou: “Triste de quem nasceu no asfalto e nos arranha-céus, que esse é um lugar de onde não se tem volta. Eu, se nada der certo, eu volto pra minha terra”. A câmera, então, focalizou os violonistas Jorge Mello e Yamandú Costa – juveníssimo –, que já atacavam uma introdução, ao fim da qual Belchior entrou, com voz doce e anasalada, desfiando os versos de “Princesa do meu lugar”.

Nunca neguei. Belchior sempre me botou comovido como o diabo. Que soe piegas, mas a propriedade com que o velho cantor aborda a sina de quem se viu obrigado a deixar os seus para fazer vida em outro canto me atinge em cheio. Talvez, é claro, por esta também ser a minha história. Talvez por isso, nenhum outro artista popular me faça tanto sentido. No vídeo que mencionei ali em cima, a conversa do Lima Duarte parece abrir caminho de forma precisa para o que Belchior vai cantar a seguir. O excerto foi pinçado do programa Som Brasil, que o ator apresentava na Globo, na década de 1980. Apesar de eu já tê-lo assistido incontáveis vezes, sempre fico embevecido. É a esse vídeo a que recorro quando sou acometido de saudade da terra, estando na terra. 

Dia desses, caiu-me às mãos o livro “Náufragos, traficantes e degredados”, do historiador Eduardo Bueno. Dentre todas, a história que mais me impressionou foi a de Essomericq, um índio carijó nascido em São Francisco do Sul, no litoral catarinense, no finzinho do século XV. Em 1505, a tribo dele recebeu pacificamente a tripulação do navio francês L’Espoir (A Esperança), liderado pelo capitão Binot Paulmier de Gonneville, que havia aportado naquela ilha. Tinham se lançado à odisseia transatlântica seduzidos pela cobiça de se fazer fortuna com o tráfico de pau-brasil, como faziam os portugueses. Os navegantes foram recebidos tão amistosamente pelos indígenas, que Gonneville levou Essomericq consigo, com a promessa de trazê-lo de volta dali a vinte luas, depois de o jovem ter aprendido na França técnicas de artilharia que poderiam ajudar a defender seu povo.

O retorno do L’Espoir ao Velho Mundo, no entanto, foi mais turbulento do que o mais agourento marujo poderia supor. Ainda na costa brasileira, parte da tripulação foi ceifada pelo escorbuto. Já perto da Europa, o navio foi atacado por piratas ingleses, em uma batalha que custou a vida de outros tantos navegantes e consumiu boa parte da munição. Mal se livrou da primeira investida, o L’Espoir se viu cercado por bucaneiros franceses. Com a tripulação reduzida e com a artilharia comprometida, Gonneville arrebentou a embarcação contra as pedras, provocando um naufrágio – única chance de tentar sair com vida do assalto. Deu certo: 28 tripulantes conseguiram nadar até a costa, entre os quais, Gonneville e Essomericq, que tinha, então, 15 anos.

Com a carga afundada em meio aos destroços do L’Espoir, no entanto, a viagem foi um fracasso do ponto de vista comercial. Gonneville jamais conseguiu obter financiamento para bancar uma nova expedição ultramarina – e cumprir a promessa de devolver Essomericq a sua tribo, ao cabo de vinte luas. Possivelmente abatido pela culpa, o capitão fez do indígena um nobre: deu-lhe seu próprio nome (o brasileiro passou a se chamar Binot Paulmier de Gonneville II) e o casou com uma jovem de sua família – filha ou sobrinha do capitão, dependendo da fonte. Segundo os registros oficiais, o nativo teve uma longa vida de conforto, no seio da nobreza europeia do século XVI. Morreu aos 95 anos, em 1583, deixando 14 filhos.

Pouco, no entanto, se sabe além disso. Por óbvio, fiquei pasmo ante o inusitado da história. Imagine só: um índigena vivendo como nobre, na Europa do século XVI! Mas as lacunas são o que mais me tocam nesse episódio. Será que Essomericq se adaptou facilmente à nova vida? Teria se acostumado ao frio europeu, às roupas e aos modos da sociedade da época? Teria procurado nas ruas da Normandia os cheiros de sua aldeia? Teria se sentado no cais, olhando o horizonte oceânico, imaginando o que faziam seus pais naquele instante exato? Teria alimentado expectativas de, um dia quem sabe, regressar ao seu povo? Teria deixado um amor para trás? Teria sentido falta dos frutos tropicais que davam com fartura no entorno de sua terra? Teria contado aos seus filhos histórias de sua infância, descrevendo os matizes da mata e o colorido das aves? Teria sentido saudade? Teria sentido saudade? Teria sentido saudade?

Enquanto a pergunta ecoa em uma repetição infindável, volto-me para minhas miudezas. Penso mais uma vez na síntese exata do Lima Duarte: saudade da terra, estando na terra. Que precisão! Na telinha, Belchior ressurge, usando botas de canos longos e um blusão de couro, em um cenário violáceo. Parece que flutua. “Não há pranto que apague/ Dos meus olhos o clarão/ Nem metrópole onde eu não veja/ O luar, o luar do sertão”, declama, cantarolando, em seguida, um nananã melódico e manso. Saudade, palavra bonita. Vou ali, dar o play mais uma vez.

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