Tina e o tempo

A porta bate atrás de mim. Subo as escadas estreitas, escuras, levando as compras que fiz no Pingo Doce. No segundo andar, uma velha baixinha se põe no caminho. Usa um avental clarinho, com bolsos enormes e sem mangas, sobre uma camiseta marrom. Me olha cheia de razão, o rosto largo emoldurado por duas bochechas verticais.

– É o novo vizinho?

Às vezes ainda não entendo as palavras surdas do sotaque português. Ela se irrita:

– É o vizinho de cima?

Apoio as compras no joelho, exausto. Só ando a pé e Lisboa é um eterno sobe e desce. Digo que sim.

– Sou uma velha solitária e doente. Preciso de silêncio e isto se calhar não existe mais.

Olho para ela à espera da acusação.

– Peço-lhe que não faça cá barulhos sobre minha cabeça.

– Pode ficar tranquila, digo, erguendo as compras. Não tenho paciência com pessoas ranzinzas.

– Tranquila não fico, sou viúva, sou velha e doente. Mas não tolerarei barulhos. Já lá estiveram outras pessoas que me deixaram à beira da loucura.

Abro caminho mansamente entre ela e o próximo lance de escadas.

Quando entro no apartamento, a primeira coisa que faço é fechar as janelas. A cidade foi invadida por turistas jovens e todos eles vêm encher a cara aqui, no Bairro Alto. Os rapazes berram pelas ruas, gargalham, cantam em inglês, alemão, polonês, o ar fica tenso, carregado de uma juventude oclusiva. Se não fecho as janelas, parece que estou dentro de um bar lotado. Mas me disseram que irão embora logo, ao fim das férias escolares. Depois, virão os aposentados, os velhinhos com grana para zanzar pela Terra. Não vejo a hora… (nunca pensei que pudesse sonhar com um desfile silencioso de criaturas decrépitas).

O supermercado aqui me deixa confuso. Compro coisas disparatadas. Agora, por exemplo, tive que inventar um espaguete com sardinhas em lata e azeitonas. Não é ruim. Na verdade, mal reparo no gosto, ocupado que estou com a senhorinha de avental. Imagino-a na poltrona da saleta ruminando rancores, entre imagens de santos e fotos do falecido. Ou não: a velhinha assiste a algum programa de tevê em que um imbecil entrevista outro. Talvez faça isso há décadas. Mudam os imbecis, a velhinha sempre ali, sob a anestesia da luz azul.

Uns três dias depois, estou lavando roupas na máquina e a campainha toca. É a velhinha. Antes de entender o que diz, reparo que as palavras duras que saltam de seu lábio inferior não correspondem à expressão fleumática.

– … este vazamento na cozinha de vocês. Já três vezes avisei ao proprietário. Isso não é possível. Sou viúva há quatro anos, sou velha e doente. Se não tomarem uma providência chamarei a polícia. A água está a surgir no teto e desce para o meu armário de arrumos.

Convido a velhinha a entrar. Levo-a até a cozinha, onde fica a máquina de lavar. Só então percebo uma poça d’água sob a máquina.

– O senhor não viu isto? Querem me fazer mal. Já três vezes avisei ao proprietário. Não sei se ainda é o mesmo, mas prometeu-me acabar com este importuno. Se não o fizerem chamarei a polícia.

Digo a ela que vou tomar providências imediatas, que vou falar agora com António, o proprietário. Ela me ordena que a avise de tudo, se não chamará a polícia. Demora a sair, repete que é viúva, solitária, doente, os braços caídos, os olhinhos imóveis concentrados no círculo acusatório. Para me livrar dela, peço para ver o vazamento na sua casa.

Seu apartamento é um cubículo que cheira a fritura, cebola, móveis velhos. Vejo ao fundo uma cama de casal antiquíssima, coberta por uma colcha bege. Recordo a cama de meus avós em Porto Alegre, há meio século; penso no sexo mecânico de pessoas atadas por um contrato. Ela entra na cozinha. Me mostra as bolhas de tinta no teto de madeira, que deve ter pelo menos cem anos. Noto uma espécie de meio fogão sobre um nicho azulejado, onde ela deve cozinhar com a panela pouco abaixo do queixo. Para contemporizar, toco em seu ombro, pergunto seu nome.

– Napoleontina. Me chamam Tina.

Por um segundo, ela parece desorientada, frágil, humana. Meu interesse por seu nome a comoveu? Ou foi o toque no ombro? Eles não estão acostumados a isso. Mas a velha se recompõe:

– Vou dizer-lhe: se calhar a coisa fica assim. Mas eu não transigirei. Ou resolvem isto ou chamo a polícia. Tenho noventa e quatro anos, vivo aqui desde sempre, sou viúva, Artur me ajudava tanto, não posso sequer ir à rua por causa das articulações. A rapariga que vem cá me ajudar às vezes falta. Trate de resolver isto, sou velha, solitária…

Não fui dizer a Napoleontina que o proprietário trocou a máquina, substituiu por uma nova. O vazamento vai parar e ela me deixará em paz. Mas hoje a vi. Estava na sacada. Comia um salgado embrulhado num guardanapo. Um ancião passou pela rua e ela o chamou pelo nome. O homem não ouviu ou não quis falar com ela. Quando terminou o salgado, Tina esticou o braço com o guardanapo na ponta dos dedos. Não, ela não vai jogar lixo na rua, pensei. Isso é coisa do passado…

O guardanapo voa. Acompanho sua trajetória de borboleta bêbada.

Imagino que minha vizinha terá prazer em vê-lo pousar na rua, prazer de sujar este mundo falsamente limpo. Mas Napoleontina não vê o papel cair. Num giro prosaico sobre os pés, volta para sua penumbra secular.

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