Amnésia

Enquanto converso com o Miguel no balcão, ele prepara mais um café expresso. Desde que eu cheguei já tomou dois. Me pergunto como sobrevive com esse negócio. O bar está quase sempre vazio, e ele toma os cafés que deveria vender. Poderia ser pior, claro, se consumisse uísque, por exemplo, ou vodca. Mas o Miguel dá a impressão de que não bebe, embora eu possa ver nele as marcas de quem já conversou muito com as garrafas. Tem a fala mole, pausada. Sua expressão às vezes endurece ou se ausenta. Quando ri, não abre muito a boca, pra não mostrar os dentes que faltam. Deve ter uns cinquenta anos. Os olhos azuis me fixam de um lugar relativamente tranquilo, a que deve ter chegado depois de longa turbulência. Mas são só impressões, não sei quase nada sobre o Miguel. Sei que viveu dez anos em Angola. Que acha aquele país ruim pra se viver. Que teve uma casa de jazz bem-sucedida em Setúbal, onde conheceu alguns dos maiores jazzmen do mundo. Agora, nesse bar alto e meio escuro do século XIX, parece o capitão de um navio obsoleto, abandonado pela tripulação. O interessante é que, mesmo assim, seu rosto tem o frescor de quem acabou de acordar. Pode ser o efeito da pele levemente rosada sob os cabelos brancos.

– Deve ser difícil não ter escolha, ele diz.

Não entendo, a frase não se encaixa na conversa. Mas logo percebo que ele se refere a algo que está passando na tevê, ao fundo do bar. É uma reportagem sobre as eleições no Brasil. Não preciso pensar muito para saber o que o Miguel quer dizer. Bolsonaro é um monstro, mas Lula também não presta. Há gente que pensa assim em Portugal. Pessoas que acreditam nas informações da mídia conservadora, calculadamente rasteira. Ouviram falar sobre a Lava Jato, mas não sobre a farsa político-jurídica que aquilo representou. Comparam Lula a Sócrates, o ex-ministro do Partido Socialista de Portugal, envolvido em crimes de corrupção e fraude fiscal. Não sabem mais nada sobre Lula, muito menos sobre o país em que eu vivi. E falam disso com dissimulada convicção, como se conhecessem melhor o Brasil do que os brasileiros. De propósito ou não, ignoram o abismo que separa o ex-presidente democrático, que deu alguma dignidade ao povo brasileiro, do títere neofascista que nos empobreceu em todos os sentidos. Colocam os dois lado a lado, veem os eleitores num beco sem saída. Tento explicar a ele a diferença, digo que a escolha, para a esmagadora maioria da população, deveria ser clara, mas vem sendo obscurecida pelo perverso aparelho de comunicação da extrema-direita. Explico que fazem parte deste aparelho o púlpito das igrejas neopentecostais, o paternalismo coercitivo dos empresários, disparos industriais de fake news. Ele me olha e repete:

– Deve ser difícil não ter escolha. Não conheço o vosso país, mas deve ser difícil não ter escolha.
Fica tudo claro pra mim. Ele não se moverá de sua posição, não discutirá o assunto. Está impregnado de verdades inquestionadas, colhidas na superfície venenosa do mundo midiático em que vivemos.
Mais um robô, penso, desanimado.

Ultimamente, carrego esta impressão áspera de que converso ora com pessoas, ora com memes. As pessoas se questionam, são flexíveis, inquietas, vulneráveis. Buscam informações por trás das informações; desconfiam do lobo, de olho na possível estupidez dos cordeiros. Já os memes repetem ad aeternum a mensagem programada nos laboratórios ideológicos do capitalismo.

Miguel então me fala de Angola. Aos poucos, percebo o que está sugerindo. Acredita que as tribos originárias são matilhas rivais que se entredevoram. Seus valores e costumes não se extinguiram com a colonização. Nunca sairão da barbárie. Tenta amenizar o que deve ser racismo e frustração de “retornado” (os colonizadores que foram expulsos ao fim da guerra colonial) com uma observação sociológica:

– Impusemos a eles uma nação que não havia. Não sabem viver como nós.

O preconceito mal se contém nas entrelinhas.

Recordo a violência física e cultural sofrida por eles com a invasão de Portugal, a barbárie europeia. Digo que a terra era daqueles povos, vivessem como vivessem. Miguel, num tom que busca a humildade, replica que, se o processo colonial foi saguinolento, é porque os homens lançados ao mar eram os piores portugueses daquele tempo. Bandidos, assassinos, aventureiros.

– Talvez os piores tenham ficado, digo.

Ao nosso lado, uma mulher cai numa gargalhada. Miguel faz um rodeio e muda de assunto. Me conta suas proezas como produtor musical. Já fez shows com Salvador Sobral, Paulo de Carvalho e… (não entendo o nome de um “músico latino que ganhou um Grammy”). Elogio sua trajetória. Ele ri como um garoto orgulhoso, desta vez sem esconder o teclado dos dentes. Pelo que me conta, avalio quanto dinheiro ganhou. Deve ser um balúrdio, como dizem por aqui. Não terá sobrado algum para arrumar os dentes? Vai ver ele gosta de conviver com seus buracos. Já vi isso antes. Pessoas em boas condições financeiras que vão se abandonando. Como se algo dentro delas quisesse sabotar as aparências. Gente comum, burguesa, vivendo um incêndio invisível, silencioso.

Pago a conta. Miguel me cumprimenta, segurando a minha mão entre as suas. É um sujeito afetuoso, há doçura sincera no homenzinho. Deve ser por isso que sempre volto. Além disso, eu não poderia ir muito longe se não conversasse com os memes. Não era assim também no Brasil? E deve estar pior agora, os predadores da elite estão surfando na ola das massas teleguiadas.

Saio do bar e, à beira do Tejo, ouço alguém me chamar. É a mulher que deu a gargalhada. É baixinha, tem um olhar tímido, vivo. Os cabelos cheios desenham uma pirâmide que vai da cabeça aos ombros. Segura a bolsinha diante da barriga, aflita. Uma ousadia cercada de medo faísca em seus olhos.
– O que nós fizemos em África foi genocídio, diz ela numa voz baixa, mas forte, que me surpreende.
A mulher sorri sem jeito, me deseja boa noite. Vai embora num passinho contido. Só precisava me dizer isso. Mas não quis falar diante do Miguel. Não teve coragem ou achou inútil, vá saber. Acendo um cigarro, suspiro a fumaça.

Ó lua que flutua sobre a ponte 25 de Abril! É preciso dizer essas coisas em voz alta, para todos, não é? O que mais nos resta? Se continuarmos conversando pelos cantos, daqui a pouco só os memes terão voz.

O olho branco da lua, de bruxa milenar, me olha com ironia. Talvez seja tarde. Mas eu prefiro, eu preciso acreditar que a opção pelo mal é uma espécie de amnésia.

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