Apontamentos – V

Pesadelos

Há pesadelos que tanto nos atormentam que quando acordamos, dentro da noite, não sabemos onde estamos, se o que acabamos de viver é real ou não. Pior, há aqueles que se repetem ao longo de noites, por meses, e às vezes até anos.

Há também os pesadelos assustadores e aterrorizantes, que se vive mesmo sem estar dormindo, como os que vivemos nos últimos anos.

Peço a todos os deuses e deusas que quando você ler estes apontamentos os pesadelos – estes que ocorrem mesmo sem estar dormindo – já sejam em menor número, que nos deixem mais aliviados e que possamos imaginar o fim dos mesmos.

Que sonho!

Será impossível, imediatamente, colocar fim nesses pesadelos, pelo menos nos próximos três meses. Mas, sem dúvida, será um alívio se os demônios que perturbam a nossa vida não chegarem ao segundo turno das eleições. Se chegarem teremos um mês de tenebrosos pesadelos, diuturnamente. Serão quatro semanas de mentiras, ameaças, violências e imposturas do tipo – só perco se as urnas eletrônicas forem fraudadas.

Certo que, se resolvido no primeiro turno, ainda teremos que conviver com lives, mentiras, ameaças e com o cercadinho, que não cerca as palavras odiosas e nocivas.

Sonho que sem o segundo turno diminuirá a tensão e com a distensão [escrevi lembrando do Mia Couto] haverá diminuição dos pesadelos.


Mia Couto

O jornal o Globo convidou uma escritora – Yara Monteiro – e três escritores – Mia Couto, José Eduardo Agualusa e Luis Cardoso – lusófonos a escrever cartas ao Brasil para falar dos 200 anos de Independência.

Mia Couto escreve:

Na minha varanda, desembarcou o mar de Dorival Caymmi, desembarcaram os versos de João Cabral, de Bandeira, desembarcou a prosa de Drummond, Amado, Machado, Rosa e Graciliano.

Todos que desembarcaram na varanda de Mia Couto, por ignorância, burrice ou autocensura de Bolsonaro, jamais chegaram em sua casa. Não seriam bem-vindos. Ao não chegarem, o homem que governa o Brasil deixa de conhecer o que há de melhor no país.

Mia Couto conclui sua bela carta contando o seu sonho-desejo para nós:

O meu maior desejo é que os brasileiros superem de vez e para sempre esta sua passagem pelo inferno. O Brasil que ganhou o respeito do mundo não pode ser representado senão por alguém que celebra a vida e que defende o tesouro maior da nação brasileira: a infinita diversidade do seu passado e pluralidade do seu futuro.

Não é apenas um desejo pessoal. É uma certeza: você vai-se levantar, vai sacudir a poeira e vai dar a volta por cima.

Que dia dois sacudamos a poeira e do dia três em diante comecemos a dar a volta por cima.


Ricos miseráveis

Tenho ficado parte de dias, das últimas semanas, nas ruas de Curitiba. Coisa que – por muitas razões, e uma delas foi o covid-19 – não fazia há muito tempo.

Ficar nas ruas de qualquer grande cidade, para quem tem consciência política ou é cristão, é encher-se de tristeza, é sentir-se culpado por ter dinheiro que permita comer o necessário para a vida.
Assiste-se a cenas, ouve-se o clamor de famintos, gritos de “loucos”, pedidos de comida, de trocadinho para comprar qualquer coisa, inclusive pinga.

– Bando de ricos miseráveis! – gritou o “louco” e continuou sua longa lamúria que não consegui entender. – Estou vivo!, gritou após a lamúria

Estar vivo entre um bando de ricos miseráveis é algo importante para ele e para os ricos que podem explorá-lo em toda dimensão: seja como banco de reserva de mão de obra, como pedinte, através das políticas de caridade, ou, até mesmo, como um paciente dentro de um hospital psiquiátrico.
Os ricos miseráveis impõem inclusive a necessidade de pedidos inusitados, como sal.

Estávamos diante do Mercado Municipal quando, entre as dezenas de pedintes, um veio pedir um pouco de sal para temperar a salada.

Meu amigo prontamente entrou no mercado, já que o pedinte está proibido de pôr os pés lá dentro, para buscar um sachê de sal. Não encontrou e optou por comprar um saquinho de um quilo de sal e entregou ao cidadão. Ele saiu entre alegre, surpreso e triste, queria sal, mas nem tanto: o que um morador de rua pode fazer com um quilo de sal?

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima