Lições de Gramática

Não costumo misturar minha profissão de professor de Língua Portuguesa com minha atividade de escritor. Não escrevo livros didáticos. Não escrevo para passar lições. O que acontece, no entanto, é que às vezes o tempo histórico se impõe como força irrefreável, irresistível, e faz-se necessário algum tipo de intervenção profissional mais contundente. A força irrefreável que hoje, e somente hoje, obrigou-me a misturar alhos com bugalhos, tango com orangotango, nação com danação, Cida com genocida e maçonaria com maconharia é o fato de aparentemente ninguém mais conseguir colocar uma vírgula para separar o vocativo do restante da oração, causando dessa forma choques visuais desagradáveis e ambiguidades indesejadas.

Toda essa marcha do erro e da insensatez, acredito, teve início no já distante ano de 2016, quando os humanos civilizados que elevaram a trending topics as hashtags #foratemer, #foragolpista, #foravampiro, viram-se obrigados a escrever desse jeito mesmo, sem vírgula nem nada, e tudo porque as ditas hashtags, instrumentos de marcação e realce aparentemente antigramaticais, não admitem o uso de sinais de pontuação.

Até aí, tudo bem, o sistema quer isso, a molecada tem que aprender. O problema todo é que essas imposições hashtaguianas, justificáveis na autolegislação linguística da internet, extrapolaram o mundo circunscrito pelo simpático joguinho da velha (sustenido, para os músicos; cerquilha, para os defensores da propriedade privada) e acabaram afetando sobremaneira a escrita comum, de modo que ninguém mais parece saber desfrutar os prazeres sensoriais promovidos por uma vírgula bem-posta. E é por isso que a crônica de hoje será uma lição de Gramática. Espero que os exemplos os ajudem a eliminar quaisquer dúvidas concernentes à teoria e, principalmente, ajudem-nos a nunca mais cometer erros relativos a matéria tão trivial.

Vocativos são termos isolados da oração. Eles cumprem a função de interpelar, invocar, chamar, dirigir-se ao interlocutor ou colocá-lo em evidência no discurso. O mesmo interlocutor pode ser posto em evidência de infinitas formas: pai, pelo filhinho; amorzinho, pelo amorzinho; vô, pelo netinho; abençoado, pelo garçom; consagrado, pelo cliente… E na escrita deve sempre (SEMPRE) aparecer isolado por alguma pontuação, invariavelmente a vírgula, ainda que eventualmente se possam utilizar outros sinais, como o ponto de exclamação e até mesmo as reticências. Como o vocativo não exerce função sintática em relação a outros termos da oração, não sendo nem parte do sujeito, nem do predicado, a vírgula serve para deixar isso bem marcado.

¿Simples, não? Exposta, portanto, a parte teórica e conceitual, vejamos agora dois exemplos concretos. Que eles possam iluminar aqueles para quem ainda resta alguma dúvida.

Exemplo 1:
Fora, pereba, remela, carniça, imundícia, frieira, fimose, filhote de lombriga, cria de tênia, peido molhado, corrimento desatado, rolo de craca, ranho escorrido, rebosteio giratório, gosma sifilítica, gengiva necrosada, refluxo gástrico, respingo de mijo, espinha vazada, banha de acne, catota visguenta, arroto do tinhoso, polvilho de caspa, bafo de rego, tripa desconjuntada, perdigoto radioativo, úlcera purulenta, hemorroida gangrenada, chapisco na porcelana, acidente da natureza, erro do Universo, infestação de varejeiras, cocô de mosca comedora de cocô, joanete, unha encravada, dedo bichado, topada de mindinho, excremento fossilizado, boca de cloaca, usina de lixo atômico, azedume infeccioso, corote de chorume, coalhada de pus, guisado de berne, cozido de muco, creme de barata, raspa de calcanhar rachado, bola de fedor de garganta, carcará sanguinolento, praga do Egito, trombeta do Apocalipse, primogênito do Cão, pior de tudo, tatu do Mal, podridão normatizada, parasita honoris causa, Nobel de rachadinha, Pulitzer de charlatanismo, garoto-propaganda de flagelo, caixa de gordura entupida, fossa transbordante, embutido de seborreia, sanduíche de catarro, suco de larva, pasta de salmonela, íngua de sovaco, freada de cueca, pulmão de embalagem de cigarro, porra coagulada, vômito ressecado, prolapso retal, polenguinho de pica, saco de bosta.

Exemplo 2:
Brasileiros e brasileiras, esconjurem de uma vez por todas o demônio inominável representado pelos vocativos do exemplo 1 (o seu nome é Legião) e o escorracem do lugar onde nunca deveria ter pisado.

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