De sedentária convicta a atleta vacilona

Eu queria pedir desculpas. A todo mundo que convenci de que ler é mais importante que fazer exercício físico. A quem eu estava querendo enganar? Meu arroubo atlético aconteceu quando me vi assombrada pela ideia intragável de quase parar. Se a minha vida estivesse valendo uma aposta, eu perderia dizendo que a Julie de 2020 mudaria de profissão, mas jamais diria que aquela pessoa se renderia ao tédio da academia de ginástica por livre e espontânea vontade. É verdade, nem tão espontânea assim. De cabeça baixa para a sina, sigo escrevendo mais do que antes e, contrariando todas as expectativas, levando as minhas pernas para passearem mais do que eu poderia ter calculado. Meu telefone calcula que eu andei 2km a mais por dia do que o ano passado em 2023, o que me dá uma média de 4km por dia, e isso me parece melhor do que contabilizar livros lidos enquanto contabilizo também analgésicos para a lombar com a postura toda torta no meu sofá.

Meu corpo tem reagido assustado. Acostumado com o silêncio a que submeti o coitado no último ano, sentada na cadeira por horas a fio escrevendo, pudera. Agora, meus ouvidos até a Miley Cyrus se renderam (em minha defesa, nunca tinha ouvido falar de Hannah Montana), because, you know, todo mundo que já leu “Mrs. Dalloway” concorda que, sim, I can buy myself flowers e este é mesmo um hino. É playlist da endorfina, colchonete na mochila e ar puro dia sim, dia também – todas aquelas árvores da praça da frente de casa empenhadas em fornecer oxigênio para os meus pulmões. A coisa toda já tinha sido impulsionada por uma ocorrência da qual não me orgulho: em 2021, fui parar na reumatologista. Com 32 anos. O diagnóstico era: bursite trombótica e epicondilite. Recorri ao Google: “dor nas ancas” e “tendinite do tenista”. Eu, que nunca joguei tênis, sou partidária do rebatismo, do verbo rebatizar e não do verbo rebater, da expressão para “tendinite da escritora”, que consiste, basicamente, em uma transformação do nosso cotovelo numa dobradiça enferrujada. Fiquei tanto tempo sentada escrevendo e dando aula emoldurada por um retângulo que não conseguia me mover sem parecer um boneco articulado desses que se vendem para desenhistas praticarem suas formas humanas.

Mas eu não era uma forma humana. Eu era uma cabeça inquieta fazendo de tudo para compensar um burnout anterior vivendo em um apartamento sem sacada, sem vista e sem cortinas, lutando contra uma rinite que me levou ao temido corticóide. Uma pessoa muito saudável, como vocês podem constatar por essa breve descrição. Meus joelhos, que também não passaram imunes, e minha lombar, que sempre se queixou da minha postura, faziam coro às reclamações de um corpo que não aguentava mais ficar sentado para escrever. Comprei uma cadeira superlativamente ergonômica, mandei colocar rodinhas na mesa para levar meu escritório para lá e para cá no apartamento, aproveitando sempre a melhor luz, me matriculei no pilates e na natação. Comecei a subir e descer os 11 andares do prédio em que morava todos os dias. Tentei de tudo. Cheguei, inclusive, a parar de dar aula e a parar de escrever. Por uns meses, por conta de um trabalho de escrita por encomenda, só fazia entrevistas. Conseguia fazê-las em pé ou alternando posições na cadeira. Foi uma operação de guerra para voltar a me mover sem dor. Ou melhor: para voltar a me mover. Com destreza.

E não que eu fosse uma atleta antes. Léguas disso. Com uma infância milimetricamente preenchida por atividades extracurriculares que a mãe, professora de artes, fez questão de me enfiar, eu fui de armadora de handebol a ginasta, carreiras obviamente fracassadas em meses até que chegasse o próximo semestre e a próxima grade de coisas-para-enfiar-minha-filha-enquanto-eu-dou-aula. Não tinha concentração para não ser massacrada sendo a menor do time e, na ginástica rítmica, o que eu gostava mesmo era das fitas e dos colãs. Depois de adulta, empreendi algumas matrículas em academias, comprei uma bicicleta, cheguei a correr, mas sempre achei que meu cérebro era capaz de me provocar mais adrenalina viajando e caminhando por aí ou sem sair de casa. Errada eu não estava. Até eu não poder mais sair de casa e eu, como boa obsessiva, exagerar na dose e nunca mais sair mesmo. As minhas dores nunca foram crônicas, tenho certa sorte nisso, mas elas inviabilizavam uma fonte de serotonina certa pra mim: o trabalho. Logo depois de um burnout – ainda antes da pandemia -, o que eu mais queria era voltar a trabalhar. Mas tudo doía. Antes um pouco, cheguei a ir pro circo, que me parecia um esporte suficientemente acrobático para não me entendiar e artisticamente estimulante. Foram alguns anos indo e vindo e me pendurando em trapézios e liras. Como se eu já não fosse aérea o suficiente. A mesma professora ofereceu aulas de alongamento para experimentarmos um aperitivo de contorcionismo e testar os limites da nossa elasticidade. Era chão demais para mim.

Nessa de uma escritora descobrir que tem um corpo, empreendi uma verdadeira odisseia de um médico a outro. Agraciada por uma genética que nunca me fez ter que ir ao hospital além de algumas cólicas e uma inquietude que disfarço bem, nunca parei quieta e isso me fazia ter um condicionamento até que louvável para a quantidade negativa de exercícios que eu fazia. Nunca quebrei um osso, não fumo, passei uma pandemia incrivelmente sóbria. Andava quilômetros em sala de aula e na cidade – não ter carteira de motorista em uma cidade grande pode ser um aliado do corpo, afinal. Parecia uma receita de sucesso. Até essa a derrocada hipocondríaca. Antes ainda de minhas dobradiças começarem a pifar, meus olhos deram indícios de que não queriam ficar mais tanto tempo assim na frente do computador. Tive outro episódio durante o meu luto mais difícil, início da pandemia. Acordei com um olho cheio de bolinhas que pareciam uma picada de aranha-marrom. E quem já passou por Curitiba sabe o terror que elas podem provocar pelo simples fato de existirem. Fui direto para a emergência e, bem, não era aranha, mas o alerta da imunidade baixa estava ativo – não havia vacina e eu estava tomada pelo medo e pelo terror. Fiquei bem e, depois disso, acabei tendo que fazer consultas frequentes ao oftalmologista. Por consequência daquele episódio, fui informada pelo médico de plantão, no dia em que fui parar lá por conta de um mero cisco no olho, que minha lágrima não tem qualidade e estava retendo qualquer coisa que passasse perto dos olhos. Não bastasse eu ser uma escritora com dificuldade de locomoção, minha lágrima estava sendo posta à prova. Minha lágrima, sabe.

Até pra chorar de verdade eu precisaria de uma ajudinha médica? Tentei argumentar dizendo que eu mereceria uma carta de congratulações da Sanepar, tamanha contribuição para os reservatórios ao longo dos últimos anos, sem sucesso. Agora é bom você andar com um colírio por aí, me diz o médico. Minha tese sobre não escrever sob efeito de psicotrópicos também seria colocada à prova pelos alunos mais atentos. E esse colírio a tiracolo aí, professora?, conseguia prever. Mas como uma hipocondríaca obediente, fiz que sim e incorporei o bendito à minha rotina de escrita que, a essa altura, já tinha voltado por livre e espontânea pressão dos clientes. Tudo ia muito bem no meu mundinho hipocondríaco até que a doce tranquilidade dos meus remédios foi sacudida por uma mudança de casa repentina. Tudo o que eu mais queria? Sim. Naquele momento e daquele jeito? Não. Fiz o que qualquer pessoa madura faria: coloquei os problemas dentro de uma gaveta mental e fui viajar. Passei cinco dias hospedada na casa de uma amiga que rema e mora na Praia da Saudade. É verdade, juro. Passei cinco dias hospedada na Praia da Saudade. Ela, que havia trocado de vida e de humores, radicalmente depois de começar a remar, me explicava coisas sobre o céu, a terra, a água e o caiaque. Que é diferente da canoa. “Quem quer ir longe, vai de canoa, quem quer ir sozinho, vai de caiaque.”, ou algo próximo disso, ela me explicava enquanto me enfiava em tudo quanto é trilha e orla por pelo menos 10km por dia. “Seus pés sempre tiveram rodinhas, Julie, onde elas estão?”, esse inquérito amoroso, de amigas que te conhecem há mais de década, pode salvar um corpo. E, aos poucos, a maresia virou o lubrificante que eu precisava para as minhas dobradiças enferrujadas. Você que vive na praia deve estar querendo me dizer que não funciona assim, mas na minha crônica mando eu e, aqui, o que enferruja é uma casa com janelas fechadas porque está frio.

E por falar em maresia, atravessar o Atlântico sozinha de caiaque não deve ser tão solitário quanto tentar consertar uma canoa sozinha e, às vezes, é mesmo melhor achar outro barco. Já em casa, recebo uma mensagem de uma corretora dizendo que o apartamento pelo qual eu havia me interessado saiu da reserva. Tem gente que compra coisas de madrugada. Eu procuro apartamentos para visitar. Chego no prédio, que tem lá sua semelhança com um navio, a corretora me diz que há um terraço comum, uma academia e, no apartamento, duas sacadas, apesar de ele ter só um quarto. Digo para ela que preferiria até três sacadas e nenhum quarto se assim fosse possível. Ela ri e me oferece uma visita à academia. Digo que não precisa, não devo usar. Depois de quase quatro meses instalada, me dou conta do naufrágio ao qual sobrevivi sabendo, no máximo, a teoria do remo e dou todos os créditos para as aulas de natação, para a praça na frente de casa e para, quem diria, a academia que esnobei na minha chegada. As quicadas de bola de basquete, os corredores obsessivos com seus relógios de medição de velocidade e os cachorros intrometidos são minha playlist predileta para acordar menos literária e, só por isso, mais escritora do que nunca. De uma convivência com pessoas insuportavelmente melancólicas, incluindo eu mesma, sobrou a inescapável presença sonora da endorfina dia e noite. Até meu sono tá mais regulado depois que transformei em observadora assídua e frequentadora quando possível deste pequeno cosmos onde as pessoas se movem e, me parece, são um pouco menos tristes. Mais felizes é uma afirmação muito forte. Mas, às vezes, eu saio da academia insuportavelmente feliz. Achava que eu era imune.

De bibliotecas bem equipadas, eu até entendo, mas de academia, não tanto. Ao adotar na rotina este novo cômodo do prédio, me surpreendi com a possibilidade de ter um aparato todo só para o meu corpo, este corpo, que voltou a dançar sozinho em casa. Comecei aos poucos, com aqueles exercícios que eu já dominava puxando na minha memória os vídeos de ioga ou ginástica da pandemia, fui experimentando a gradação dos pesos coloridos, devidamente organizados num suporte embaixo da bola de pilates, uma amiga da velha guarda. Mesmo não sendo exatamente frequentadora, eu reconheço a mobília: uma esteira, uma bicicleta, um elíptico (a proximidade com o nome de figuras de linguagem me ajuda). Os três dividem o protagonismo com um outro aparelho a que apelidei de Michelangelo: é capaz de esculpir todas as partes do corpo, do cotovelo à falange do pé. A academia, para a minha sorte, não conta com aquele que, pra mim, é o mais angustiante dos aparelhos: um simulador de escadas que não te levam a lugar nenhum, mas te fazem conquistar panturrilhas de respeito – o próprio simulacro de Sísifo só que sem a pedra. A vasta nomenclatura dos movimentos também merece uma tecla SAP à parte. Arrisco dizer que escrevi esse texto mentalmente, num domingo, ao meio-dia, enquanto fazia um exercício voador invertido no Michelangelo, digo, na máquina. Fazia tempo que precisava recuperar o respeito da minha caneta escrevendo algo meu – os dilemas de quem escreve por encomenda. Enquanto desenhava os músculos do meu ombro sabe-se lá por quantas séries porque parei de contar, as letras iam se enfileirando na minha cabeça e eu ia editando, com o meu cursor imaginário, o que eu pretendia contar aqui.

Quase dois meses depois de incorporar de verdade o exercício à minha rotina, estou convencida de que minha produtividade aumentou e nem é como se eu estivesse mais abastecida de histórias – o que consegui foi esvaziar minha cabeça e isso, sim, é um feito. Uma sala inteira para reorganizar as palavras em novas prateleiras endorfinadas, um cérebro com cores menos solenes e paredes mais coloridas, até os conduítes voltaram a ser amarelinhos. Saindo da academia, depois de um fim de semana dedicado à escrita e a mim mesma, corri para almoçar num buffet por quilo. Eu, que nunca saio de guarda-chuvas, fui surpreendida por um minitemporal no meio do caminho e precisei parar na marquise mais próxima. Só havia um restaurante viável para chegar sem se encharcar tanto: uma churrascaria. Num domingo. Depois de uma mudança radical de vida, não havia nada mais corajoso do que almoçar sozinha numa churrascaria, penso. Num domingo, é importante frisar. Eu nem sou tão fã assim de carne. Cogito ficar e testar se minha endorfina me salvaria de uma derrocada dominical melancólica, estou longe demais da praça e da sua alegria vigilante. Hesitei e segui o plano inicial: me encaminhei a passos rápidos para o buffet de variedades inofensivo duas quadras adiante. Tropeço com a precisão de um corpo que sabe exatamente para onde está indo, mas ainda é cambaleante, os sapatos já cheios de lama. Ando duas quadras e minha cabeça já está inacreditavelmente cheia. Outro banho de chuva e um pouco de literatura não vão fazer tão mal assim.

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