A bruxa e o eremita

A moça me olhava de lado. Tinha uns olhos castanhos que não se fixavam bem em mim, como bolas de mercúrio. Ela queria me dizer qualquer coisa, mas eu não lhe dava essa possibilidade. Porque além do olhar pouco confiável, a moça era ao mesmo tempo uma velha: tinha cabelos brancos espetados, de bruxa caricata, e dois longos pelos finos brotando do nariz, feito antenas de inseto. Sua pele era muito branca, seca, salpicada de sardas. A mistura de inexperiência e velhice me fazia suspeitar que ela só poderia me dizer coisas levianas, de quem ensina o que não sabe.

Quando percebi que a criatura ia abrir a boca, acordei.

Eram quatro horas da tarde, a casa estava em silêncio. Lembrei que Rute havia saído. Me levantei e fui fazer um café, para afastar o clima estranho que o sonho tinha deixado. Não era preciso ter pressa. Estávamos no meio do feriado de carnaval e eu não tinha nada para fazer. Me senti aliviado, gosto de não fazer nada sem nada para fazer depois.

Peguei a caneca de café e me sentei no sofá. Abri um livro, mas não consegui me concentrar no texto. É que dali, do meio das páginas, a bruxa ainda me olhava. Dessa vez não fugi ao seu apelo. Curioso até, resolvi encarar o meu próprio espectro feminino.

Sem ter conhecimento suficiente sobre o mecanismo dos sonhos para tirar conclusões (umas poucas leituras distraídas de Freud e Jung), pensei que a imagem dela, nascida em mim, de mim e para mim, talvez refletisse algo em que tenho pensado com frequência. Talvez fosse a imagem de um conflito interno que tem me perseguido e crescido ao longo dos anos. Resolvi escrever sobre o assunto para, quem sabe, compreender um pouco melhor a mensagem do eu adormecido. Alguma resposta, mesmo que precária (e como não seria?), eu precisava dar àquele olhar que emergia do fundo falso da consciência.

Abri o computador e anotei o texto a seguir.

“Acabo de fazer cinquenta e nove anos. Era de se esperar que isso me trouxesse uma compreensão melhor da vida, que eu tivesse algo do Eremita das cartas de tarô, do preto velho da umbanda, de mago Merlin ou qualquer outro mito do velho sábio. Mas a verdade é que tudo que aprendi diz respeito à vida prática. O que é que eu sei? Sei resolver rapidamente problemas que antes pareciam muito complicados, não caio fácil em roubadas, antecipo eventos que em outros tempos me pegavam desprevenido. Não sofro tanto com o que já não traz novidade alguma, um dia ruim, uma despedida, o encontro com alguém mau ou perverso, a indiferença de um filho ou até mesmo a morte de uma pessoa querida. De modo geral eu poderia dizer que aprendi a me mover melhor na superfície, onde a convivência desgastante comigo mesmo e com outros seres humanos destroçou ilusões e decantou um desolado instinto de sobrevivência. Além disso, alguma bondade poderá ter nascido de uma longa experiência com o mal, meu e dos outros, mas será mais fruto do cansaço de tanta tramóia do que uma opção moral lapidada pelo tempo. Já mordi a carne dos outros, e seu gosto era amargo. Da mesma forma fui abocanhado, alimentei a amargura alheia. No declínio da vida, busco um pouco de doçura, o que significa apenas uma estratégica mudança de cardápio.

Aqui jogo de lado a bengala do velho sábio. E me deixo cair, ou melhor: deixo de fingir que não estou caindo. Caio no espaço, caio no tempo, caio em mim. Caio como o paraquedista Altazor, de Huidobro, e “voy pegado a mi muerte como um pájaro al cielo”. Caio porque não sei, nunca saberei, o que realmente importa.

Por que fui lançado à vida com a ridícula lanterna do meu entendimento, suficiente apenas para ver uma fímbria inexpressiva do infinito, e depois sumir?

O sonho com a bruxa talvez sintetize esse conflito da consciência (que pensa em pensar para sempre) com o moinho da matéria que a trouxe à luz só por um breve e doloroso momento. Penso que, se os cabelos brancos da bruxa simbolizam o conhecimento excruciante da tragicomédia, seu rosto jovem e pálido quem sabe represente tudo que é belo e verdadeiro na vida humana, mas percebe que está destinado a ser destruído em um cosmos material impiedoso. Daí o olhar fixo e indeciso dela, tentativa de afirmação do entendimento eternamente pueril sobre o caos implacável.

De qualquer forma, o sonho me pôs de joelhos. Tenho quase sessenta anos e estou ajoelhado diante do altar da minha Santa Ignorância. Não diria que é uma deusa boa, nem má, porque não sei, é possível que ela me proteja de verdades fulminantes. Mas é a única que tenho. Todos os outros deuses e deusas devem sua existência a nós. A ignorância não, ela nos precede, ela nos atravessa e sustenta como a seiva de uma planta pálida, voltada sobre si mesma.

E no entanto – e no entanto eu rezo. Agradeço pela experiência teatral do meu corpo provisório, surgir com o palco, apagar-se com ele. Bendigo este dia que se despetala do meu ramalhete de horas. Bebo o prazer e o sofrimento como o absinto do meu destino obscuro. E danço sobre as cinzas dos meus antepassados, ergo a poeira da metamorfose eterna, me dissolvo na aparição do futuro. Não há tempo a perder e a única permanência é a transformação criativa das coisas em seres, dos seres em coisas. Não há tempo a perder e minha resposta ao absurdo é criar também o ser-coisa que está atado ao instante como o raio invisível à roda, como a palavra ao sopro. Criar, sem esperar retorno, tamborilar no caos, dançar entre os cães maiores e menores, átomo e astro, fluir com o rio das mutações da matéria – essa é minha única resposta.”

É claro que o fato de eu ter escrito esse texto não clareou nem desfez o paradoxo deixado pelo sonho. Eu simplesmente o esqueci, aos poucos, sob o fluxo da realidade aparente. Pois o dia seguiu seu curso. Um pássaro grande e arrepiado pousou na mureta do terraço, olhou para mim de lado, voou. O vizinho pôs uma música bem baixinho, uma canção popular que de repente não ouvi mais. Rute chegou e voltou a sair, deixando o cheiro bom das maçãs que trouxe do mercado. A brisa estremeceu a cortina de contas da porta dos fundos. E a luz do sol, que estava na sala, foi para o quarto, como um gato, para lamber a trama da colcha que dormia na sombra.

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