Quando Nietzsche foi à praia

A despeito da enorme e aparente homogeneidade monocromática percebida pelo olhar humano ao observar praias, dunas e montes na frente de construções, basta que alguns grãos de areia sejam colocados sobre a lâmina de um microscópio para que toda uma multiplicidade de cores e geometrias as mais inusitadas se torne visível.

Uma pequena porção de qualquer tipo de areia, retirada de qualquer lugar, torna-se, pelo escrutínio devassante das lentes enfileiradas, um verdadeiro universo em miniatura, um microcosmo revelador não apenas da rica complexidade oculta no minúsculo, como também da pobreza de nossas percepções imediatas.

Por certo não se passaria de outro modo com aquela pequena porção da areia da praia em que eu, sob um sol desde sempre apto a me exterminar, me encontrava, rodeado pela muita cerveja, pelos ruídos muito agitados da grande família ao lado, pela tenacidade das pequenas ondas que perseguiam os pés competitivos da menininha fugindo delas, pelo cachorro simpático que ia de guarda-sol em guarda-sol buscando alguma migalha humana que lhe enrijecesse um pouco a carne magra, pelos corpos muito brancos, imersos na ilusão do bronzeamento, resistindo à efetiva porém gordurosa proteção do filtro solar, e pelas peles submetidas à influência inescapável dos genes e do trabalho, e por isso não tão claras assim, dos vendedores de churros, de milho, de pamonha, de tapioca, de crepes, de coxinha, de sorvete, de água, de raspadinha, de cerveja, de água de coco, de colares, de óculos, de caixinhas de som, de redes, de algodão doce…

E foi pelo vendedor de algodão doce que toda a minha atenção, durante, depois e agora, mobilizou-se.

Todo vendedor, na praia ou fora dela, dispõe de certos recursos materiais para chamar a atenção dos possíveis consumidores. O sorveteiro tem o seu apito; o vendedor de redes tem o seu carisma e o seu desconto de 70%; a vendedora de pamonha tem um bordão inventivo; o que vende coco tem o apelo estético-glamouroso conferido a quem posa para a foto com um coco verde nas mãos; o vendedor de óculos de sol tem os modelos de última grife a preços que surpreenderiam os donos das grifes; o que vende cerveja tem…bem…tem a cerveja. Todos, enfim, devidamente guarnecidos de acordo com os códigos compartilhados entre os que vivem neste mundo de muita venda e muita compra.

O vendedor de algodão doce, para evidenciar sua chegada (à parte a sedução e eloquência do colorido das embalagens), dispunha daquele pedaço retangular de madeira que, quando agitado, movimenta uma peça de metal que bate contra ele e origina o inconfundível chamado percussivo, identificado a distância por qualquer ser vivente.

Mas não era de qualquer forma que esse específico pedaço de madeira com uma peça móvel de metal era agitado. Bem poderia ter o vendedor escolhido alguma batida monótona e desritmada para nos comunicar sua passagem por aquela porção de areia. A compreensão se daria da mesma forma. Mas o que ele fez foi transformar o objeto em verdadeiro instrumento musical, tocando, a intervalos regulares de tempo, um ritmo irresistivelmente dançante e com traços indiscutivelmente africanos que meu amigo e compadre (e professor de música) Fernando Bonato identificou como maxixe, dança sincopada criada no Rio de Janeiro do sec. XIX.

Mas sua passagem não se resumia só ao ritmo. Aliado ao ritmo − como se houvesse um imperativo ético, uma necessidade fisiológica de demonstrar que nada ali acontecia sem uma vontade, sem um arbítrio ─ cada passo dado por aquele homem marcava com precisão um tempo do compasso do maxixe, o que conferia à sua performance não apenas uma tremenda coesão rítmica e visual (andando no andamento, brinquei depois), mas também transformava suas pegadas na partitura de uma música escrita no exato instante em que era executada.

Música difícil, composta por alguém que caminha 20 km por dia carregando nos ombros o peso de um sol inclemente junto ao fardo da doçura alheia, por alguém que bem poderia percorrer os quilômetros maquinalmente, queixoso e inanimado, sem alegria e sem amor pelos momentos irrepetíveis da vida, que são todos, por alguém que nunca poderia ser recriminado por uma queixa, caso as houvesse, mas que preferiu, como nos versos de Caeiro, não ser aquele que atravessa a vida olhando para trás de si e tendo pena…

Eu confesso que dancei − ou fui dançado − desengonçado como ninguém mais conseguiria, levado e tomado pela alegria de um momento puro em que os movimentos corporais simplesmente acontecem, entrelaçados de tal modo a uma cadência que já não se pode mais estabelecer quem originou quem.

Efêmera foi a passagem do vendedor de algodão doce por aquela porção de areia, mas suficiente para que toda uma Filosofia e todo um jeito de tocar a vida contidos naquele ritmo contagiante me fizessem desejar segui-lo em sua via repleta de energia vital, de espírito dionisíaco, de alegria, dançando juntamente com a grande família agitada, com a menininha que corria das ondas, com o cão simpático e itinerante, com os outros vendedores e com mais todas as pessoas daquela praia que viveriam então um momento de eternidade, destituído de qualquer utilitarismo, irrepetível desde sempre mas ele mesmo ávido por repetir-se.

Infelizmente, quase ninguém percebeu o ritmo passante e quem acabou passando foi a ocasião.
Assim falava Zaratustra: “A vida sem música seria simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exílio”. “Eu só poderia crer num deus que soubesse dançar”.

Os que não entenderam Nietzsche ficariam espantados ao saber que o Super-Homem é um vendedor de algodão doce.

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