Sebos, antiquários, bibliofilia e bibliófilos.

Para a maioria da população, objeto velho joga-se fora. O antigo, sem saber que é antigo e que pode ter algum valor, também se joga fora, inclusive livros.

A questão para mim – que sou ignorante na área –, e que deve ser para muita gente, é saber o que é velho/usado e o que é antigo. E, mais, o que é raridade.

Atenção: não escrevi trapos. Sabemos o que se faz com os trapos.

Mas quem decide o que é novo, antigo ou raridade?

O mercado, o antiquário ou o sebista. Existe a palavra sebista?

Não vou procurar no Google, mas pergunto: há alguma regra e, se há, qual é para separar o velho do antigo e do raro?

Não sei se há regras, mas existem oportunidades que os negociantes sabem aproveitar. Certo que há donos de antiquários que não gostam de ser chamados de comerciantes.

No A Misteriosa Chama da Rainha Loana, Umberto Eco, há o seguinte diálogo entre Yambo, dono de um antiquário de livros raros e sua funcionária Sibilla:

“Tenho uma viúva para você, Yambo”, disse-me Sibilla piscando o olho.“Uma viúva como?”, perguntei. Explicou-me que os livreiros-antiquários da minha categoria têm algumas formas de conseguir livros.

Descreve algumas das formas e entre estas está o método do abutre:

Finalmente, tem o método do abutre. Descobrir as grandes famílias decadentes, com mansões antigas e biblioteca vetusta, esperar que morra o pai, o marido, o tio, e que os herdeiros não saibam como avaliar aquele monte de livros que nunca sequer abriram. Diz-se viúva por dizer, pode ser o sobrinho que quer botar a mão no maldito dinheiro rápido, mesmo perdendo, e melhor ainda se estiver metido com mulheres ou droga. Então você vai ver os livros, passa dois ou três dias naquelas salas penumbrosas e decide a estratégia (pág. 61).

Numa outra passagem do mesmo romance, Eco volta ao tema e diz:

Todo antiquário, e acho que todo colecionador, sonha de vez em quando com a velhota de noventa anos. É uma velhinha com um pé na cova, não tem um tostão nem para comprar remédio e vem lhe dizer que quer vender uns livros de seu bisavô que estão no porão (pág. 260).

Os donos de antiquários – os de sebo também? – ficam de “olho” nas viúvas e velhotas e nos herdeiros?

Imagino que os bibliófilos devem ser os maiores visitadores de sebos e antiquários.

O Ney de A. Guimarães Junior, na ‘carta’ comentando a primeira crônica – “Dedicatórias” – aqui publicada, escreveu:

Bibliofilia é o amor pelos livros, não necessariamente pelo seu conteúdo. O bibliófilo, mesmo atento ao conteúdo, deseja o objeto físico de preferência a primeira edição, o primeiro exemplar que saiu do prelo.

O bibliófilo não é aquele que ama os Lusíadas, mas aquele que ama uma determinada edição, uma determinada cópia dos Lusíadas; quer tocá-la, folhear, passar os dedos pela encadernação, admirar o trabalho do artesão que encadernou.

Luís de Camões, autor de Os Lusíadas.

O bibliófilo fala com o livro enquanto objeto, busca que o livro conte suas origens, sua história, busca saber das incontáveis mãos pelas quais passou. As dedicatórias fazem parte destas histórias. Possuo um exemplar dos Lusíadas que pertencia à minha avó, no qual está escrito:

Pertence a Palmyra Seiler

Curitiba, primeiro de março de 1902.

Dna. Palmyra teria 15 anos nesta data.

Às vezes, um livro conta uma história feita de manchas de dedos, anotações nas margens, assinaturas no frontispício, e até buracos de traças. Isto deve ser repassado aos jovens, que muitas vezes acham que bibliofilia é uma paixão de endinheirados; sem dúvida, existem livros que custam milhões; estive em Portugal há dois anos, visitando a livraria Elo, no Porto, na seção de livros raros, e tive a satisfação de folhear um exemplar de uma edição seiscentista de Os Lusíadas, que custava a irrisória soma de 250 mil euros, também um exemplar da primeira edição “Do Velho e o Mar”, de Hemingway, que custava 36 mil euros. Portanto, o desejo por livros, não necessariamente por livros antigos, mas também por livros velhos.

Um jovem interessado pode encontrar facilmente em sebos no Brasil coisas maravilhosas e baratas; basta deixar de comprar um tênis da moda por trezentos reais ou mais.

Digo: Portanto, o desejo por livros, não é necessariamente por livros antigos, mas também por livros velhos.

Obrigado Ney, sua “carta”, além de ótimo conteúdo, deu conta de 50% da crônica.

A crise econômica no Brasil elevou o preço do quilo do arroz no país. Crédito da foto: Polina Tankilevitch/Pexels.

O Ney refere-se aos valores que colecionadores pagam pelos livros antigos. Desculpe abusar da paciência: alguém pode dizer que não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas no Brasil, hoje, milhares ou milhões de pessoas não têm dinheiro para comprar arroz. Como comprar livro se o Bolsonaro ainda quer colocar mais impostos?

Volto ao A Misteriosa Chama da Rainha Loana, onde Eco observa que a …Bíblia de 42 linhas de Gutemberg, o primeiro livro que se imprimiu no mundo. …bateu não sei quantos bilhões recentemente num leilão e foi comprado por banqueiro japonês, creio eu, que logo trataram de trancafiá-lo num cofre (pág. 260).

Que maldição! Paga caro e por medo de ser roubado tem que trancafiar num cofre e não mostrar nem contar para alguém que tem uma “Bíblia” em casa.

Hoje o arroz também já está sendo guardado por seguranças nos mercados ou, será que também trancafiado em cofres?

Se reclamar do preço, “vá comprar na Venezuela”.

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