O Diógenes da padaria

Ele entrou na padaria com dignidade pétrea, embora alguns clientes que tomavam o desjejum acomodados nas mesas adiante, de súbito, torcessem o nariz ante sua presença. Trazia às costas uma mochila rota e um saco de estopa cheio do papelão que, aparentemente, catava para levantar uns trocados. Em pleno frio de maio, vinha metido em um moletom preto e em uma calça remendada, cujo tamanho lhe parecia maior que o adequado. Embora mancasse da perna esquerda, algo em sua postura lhe conferia um ar altivo. De quando em quando, coçava a longa barba branca, o que lhe acentuava os ares de filósofo da antiguidade.

Como que para aplacar o burburinho, um tipo magricela e de óculos que parecia ser o gerente do estabelecimento se precipitou, fazendo menção de expulsar o velho, no justo instante em que este se recostava ao balcão. “Não vou sair. E meu direito de ir e vir? Se quiser, que me arraste para fora”, retrucou, sem fazer alarde, mas de modo firme. Na mesa mais próxima, de onde eu assistia a cena, intervim: “Pode servir este senhor, que eu pago”, disse ao funcionário, que me fulminava por detrás de suas lentes grossas.

Agradecido, mas sem parecer servil, o homem se dirigiu a mim e, quase que automaticamente, mostrou-me as palmas das mãos calejadas e um tanto sujas, como prova de que exercia algum tipo de labor. Vai ver, o gesto tenha sido algo como um reflexo involuntário de quem está acostumado aos valores da sociedade que, em geral, tende a medir os cidadãos pela perspectiva do trabalho e do consumo – como se fosse gente quem tem emprego e poder aquisitivo. Vá saber.

“Puxe uma cadeira. Sente-se”, sugeri. “Na mesa com o senhor?”, perguntou o velho, um tanto assombrado, mas já se acomodando no lugar diante de mim. Quando lhe serviram pães na chapa e café com leite, comeu com a voracidade dos que têm fome. Entre uma mastigada e outra, mostrou-me os coturnos seminovos, encontrados em uma lata de lixo. “É impressionante o que as pessoas jogam fora. Elas têm muito mais do que precisam para viver”, observou. Conforme contou, naquela manhã fora despertado quase atingido por um balde de água, que lhe atiraram por dormir sob uma marquise. Havia alguns anos, perambular de uma cidade a outra era a forma que encontrara para não se sentir aprisionado e lidar com um trauma que não foi capaz de revelar.

Por um instante, a figura do velho mendigo me lembrou Diógenes de Sinope, o grego que fazia da pobreza sua virtude e que, com seu desapego, criticava a hipocrisia dos atenienses. De relance, percebi que todos olhavam para a mesa em que estávamos. Assim que se deu conta, o senhorzinho se levantou e, em voz alta, começou um breve discurso sobre a efemeridade da vida e a pequenez dos valores daquelas pessoas, que lhe desprezavam em sua condição primeira: de gente. Emendou, desatando a falar sobre autossuficiência, mas calou-se no meio do pensamento. Como se quisesse encurtar conversa, tirou do saco de estopa um livro grosso, de capa dura. “Falta-lhes leitura!”, sentenciou, brandindo a encadernação, feito um exorcista com crucifixo em mãos, a expurgar espíritos demoníacos.

Tornou a se sentar, em triunfal silêncio. Enquanto voltava ao café da manhã, pude ler na capa do livro: “Decamerão – Boccaccio”. Quando me despedi, ele me recomendou duas coisas: “Não seja como essa gente… e leia os clássicos”. Isso já faz uns anos. De lá pra cá, em que quase tudo tende à superfície, ante verdades viradas ao avesso que se alastram em aplicativos e versões que cabem no espaço de um tuíte, o episódio me parece ainda mais significativo. Que o velho Diógenes da padaria esteja bem. Quanto a nós, que não nos falte leitura. Nem empatia.

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