Notas de uma vida monótona

Na terça-feira, enquanto dava a minha habitual corridinha para pegar o Tamandaré-Curitiba e não precisar enfrentar meia hora do tédio de um ponto de ônibus, meu joelho estalou. Subi os degraus do coletivo com uma careta de dor, solenemente ignorada pelo motorista, que deve estar acostumado a atrasadinhos que se estrepam em corridinhas matinais e acham que só por serem desorganizados merecem a sua compaixão. Manquitolei o resto do dia, mas agora passo bem (ou aquilo que, mal e porcamente, convencionei a chamar de “bem”, o que significa que sigo no limiar da paranoia, mas com o joelho saudável).

Há alguns anos, quebrei o calcanhar. Mais especificamente, o calcâneo, que, aprendi na época, é como se chama o osso que forma o calcanhar. Foi o primeiro osso que quebrei em toda a minha existência, e de um jeito completamente estúpido, envolvendo um portão, uma motocicleta e – a quem estou querendo enganar? – uma pitada de insanidade. Não darei detalhes. Alguém tão imprudente quanto eu pode encarar a coisa como um manual de instruções (provavelmente, uma criança de sete ou oito anos) e na certa não queremos isso.

Na época, eu dividia um apartamento no centro da cidade com uma atriz sexagenária, um estudante de direito de 18 anos, uma hare krishna na casa dos 40 e um poodle irascível com tendências homicidas. Era uma configuração um tanto esquizoide, mas era o que dava pra fazer, e acho que no fim nos saímos bem.

Eu também namorava uma advogada com quem vivia às turras, numa relação que era um vórtice de ressentimento e loucura. Como era de se esperar, pouco tempo depois fomos viver juntos. Como era mais ainda de se esperar, ainda menos tempo depois nos separamos, provavelmente por minha culpa.

Passei dez dias saracoteando até o trabalho e depois pela noite do centro da cidade com o calcanhar quebrado – oras, foi só uma pancada! Uma manhã, não pude levantar. Sentado à beira da cama, me preparei antecipando a dor e icei o corpo com os braços. O lado direito vacilou e um metro e noventa de ossos, músculos e nervos se estatelaram contra o piso.

Minha ex-namorada me colocou num táxi, fomos até o hospital de traumas. A médica de meia-idade que analisou o raio-x me encarou por cima dos óculos como quem encara um pobre imbecil fadado à extinção, sem a mínima possibilidade de sobreviver neste mundo:

– Há quanto tempo você está andando assim por aí, rapaz?

– Uns dez dias, respondi.

– Rapaz, você é doido?, ela quis saber.

Achei melhor guardar a informação pra mim.

Saí do hospital com minha primeira tala imobilizadora e meu primeiro par de muletas, que usei por três meses (o que de modo algum me impediu de seguir saracoteando por aí, só que agora de modo mais incômodo e menos veloz). Eu deveria voltar, aconselhou a médica, e provavelmente fazer fisioterapia.

Considerei aquilo tudo um exagero. Me livrei da tala e das muletas durante o Natal na casa da minha avó, estimulado pelo ambiente festivo e talvez uma meia dúzia de Brahmas em lata. Botei o pé no chão, testei. Andei um pouco pra lá e pra cá, nenhuma dor. Andei mais um pouco pra lá e pra cá – aparentemente, tudo certo. Escorei as muletas em uma parede e fui comemorar minha liberdade jogando baralho com o pessoal.

***

Na semana passada, além de quase perder o joelho direito (posso ser um homem dramático), li “Destinos piores que a morte”, de Kurt Vonnegut. Empréstimo de um amigo (alô, Glauco! alô, Karen!), que estava parado na pequena pilha ao lado da cama. A cada livro que leio de Vonnegut, gosto mais dele. Seu pacifismo bem-humorado, sua verve de ácido fluorídrico contra a ignorância e a tirania. Se todo mundo tivesse lido ao menos alguns parágrafos de Kurt Vonnegut, com certeza não teríamos nos metido nessa bagunça envenenada em que nos metemos.

Acompanhei pelos jornais e pela TV a passagem da comitiva brasileira pelo Fórum Econômico Mundial, em Davos. Assisti ao discurso do presidente (meu plano era fazer isso enquanto almoçava, mas quando ele acabou o prato ainda estava no micro-ondas), li sobre as reuniões canceladas e sobre as coletivas de imprensa às quais não apareceu (e mentiu descaradamente a respeito). Pensei em escrever um texto aqui sobre isso e intitular “A glória de um covarde”, o mesmo título do filme de John Huston (que nem é tão bom assim) baseado no romance de Stephen Crane, mas supus que ninguém estaria muito interessado em ler minha opinião a respeito do constrangimento presidencial.

De modo que me vi sem um tema e em cima do prazo de entrega deste texto. E é por isso que no momento (supondo que já não tenha me mandado às favas) você está lendo essa colagem um tanto desconexa de cenas autobiográficas e desinteressantes.

(Vergonhosamente, acabo de admitir publicamente que em minha terceira semana de coluna já me peguei, de repente, sem tema. Isso seria motivo para qualquer chefia com o mínimo de juízo cassar a minha carteirinha de cronista, antes que eu promova algum estrago irremediável. Felizmente, como assinalou um colega, entre os colaboradores do Plural há muito pouco juízo, o que, pelo menos no meu caso, é uma ideia difícil de contestar.)

Uma determinada madrugada, às duas da manhã, uma amiga me ligou. Só existem três motivos para você receber uma ligação às duas da manhã: alguém morreu, a mãe de alguém morreu, ou alguém está terrivelmente bêbado (façam suas apostas).

Não me importo. Raramente vou para cama antes das três ou quatro (e costumo sair dela às oito ou nove; durmo pouco e mal). Minha amiga me contou, resumidamente, que a vida ia mal (e vai mesmo), que o mundo está louco (e está mesmo) e que ela às vezes se pega num beco sem saída (compreendo perfeitamente), mas naquela noite ela tinha visto uma brecha e resolveu festejar consigo mesma (o que eu também faço de vez em quando). Às duas da manhã, constatou que festejos costumam ser mais divertidos quando envolvem mais de uma pessoa, e então me ligou. Infelizmente estava chovendo, ela estava longe e eu tinha uma reunião no dia seguinte. Precisei declinar:

– Você não pode exigir que eu saia correndo de casa às duas da manhã no meio da chuva – argumentei. – Sou um jovem senhor. Jovens senhores precisam de alguma rotina, algum planejamento.

Ela entendeu. Ficamos mais algum tempo no telefone. Ela me repetia, resumidamente, que a vida ia mal (e vai mesmo), que o mundo está louco (e está mesmo) e que ela às vezes se achava num beco sem saída (eu também me sinto assim).

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