Da janela

Do alto do nono andar, o bairro se me apresentava a partir de uma infinidade de arranha-céus que se sucediam até o horizonte, onde quer que a vista alcançasse. Era a primeira vez que eu morava em um edifício e, talvez por isso, a imensidão da urbe contemplada de cima me arrebatasse com tamanha intensidade. Eu protagonizava, então, papel similar ao de milhares naquela metrópole: era um jovem retirante, com muitas aspirações e pouco dinheiro, ocupando um cômodo claustrofóbico de apartamento – e que em algum lugar do passado se convencionou chamar de “quartinho da empregada”.

Nas noites de insônia – que eram muitas –, eu botava Belchior na vitrola e dava de me debruçar na janela, olhando aquela vastidão de luzes acesas nos prédios vizinhos. Caía como um alento imaginar que sob cada lâmpada daquelas havia uma pessoa e, por conseguinte, um sonho. Eu me sentia tal qual era: diminuto. E quando a gente se compreende pequeno, os nossos problemas deixam de ter tanta importância.

Isso faz uma década. De lá pra cá, no entanto, o ato de ficar à janela nas madrugadas em que o sono me foge se tornou um hábito. Talvez seja uma adaptação dos modos de moleque de interior, de cismar olhando o céu – com a diferença que os prédios inspiram menos poesia e que deles não chispam estrelas cadentes.

Em contrapartida, para o bem ou para o mal, agora posso acompanhar minhas divagações de um destilado, que costumo bebericar sem pressa, o que me ajuda a dar peso exato às coisas. Mesmo quando o que está na minha frente é o edifício vizinho – e não a lua –, invariavelmente, puxo Drummond para mim mesmo: “Eu não devia te dizer/ Mas essa lua / Mas esse conhaque/ Botam a gente comovido como o diabo”. É clichê? Que seja.

Mas nem tudo que o se refere a janelas são madrugadas insones e filosofias. Para quem mora sozinho, como é o meu caso, o que se observa da veneziana pode ajudar a assentar a rotina e ter um gosto de familiaridade, como um atestado de que a vida segue nos eixos. Sempre que chego do trabalho, por exemplo, é batata: o gato felpudo do bloco da frente permanece feito esfinge, em uma das janelas do terceiro andar. Às dez da manhã e com pontualidade britânica, a senhorinha do segundo andar se debruça para fumar, em baforadas preguicentas. Senta-se de lado, como quem olha em direção à rua, a contar os passantes ou os carros. Às sete, a vizinha do térreo se vale da luz da alvorada para se maquiar, provavelmente, se aprontando para o dia de trabalho. Estranharei no dia em que, por algum motivo, não cumprirem seus respectivos rituais, aos quais me acostumei.

Do mesmo modo, é fato que devo ser observado. Costumo deixar as cortinas abertas, o que deve facilitar as bisbilhotices e o escrutínio da vizinhança. Talvez o velho do primeiro andar ou a adolescente do quarto piso tenham encasquetado comigo. É provável que me tomem por desleixado, a julgar pela bagunça do meu quarto, que deve ser visível de onde me fitam, sorrateiros.

Quiçá tenham se apegado a fragmentos do meu cotidiano e, mesmo, se perguntem quando algo sai fora da linha comum. “O barbudinho está atrasado hoje. Geralmente, janta mais cedo”. Ou então: “Ele teve insônia de novo. Mas o que estará bebendo desta vez?”. “Outro livro? Que diabos estará lendo?”. O que pensará a mulher do térreo no dia em que eu não passar de manhãzinha, lhe desejando bom dia?

Num comecinho de madrugada desses, apenas uma das luzes do edifício vizinho estava acesa. Pela janela entreaberta do quarto andar, pude ver a jovem que se alternava em poses afetadas, querendo se fazer sexy, com o celular em mãos – provavelmente, tirando fotos de si mesma diante do espelho. Em pouco tempo, a garota saiu do meu campo de visão, mas logo reapareceu, sorridente, trajando outra roupa e com os longos cabelos, agora, presos num rabo de cavalo, para mais uma sessão de cliques.

Ela ainda repetiu o processo mais uma vez, fotografando-se com outro look. Em seguida, ficou ali, compenetrada, manuseando o aparelho – o que me fez pensar que editava as imagens ou as postava em redes sociais. Por fim, abandonou o smartphone, soltou os cabelos – desta vez com gestos lânguidos, menos decididos. Voltou à cena um pouco adiante, já com um camisetão de dormir, cerrou as cortinas e apagou a luz.

Fiquei um tempo ali, olhando para a janela escura, como que para me certificar de que a jovem insone havia mesmo ido para a cama. Enquanto isso, matutei com meus botões e inferi que o movimento dela era quase oposto ao de quem cisma à janela. Quem olha para fora, talvez o faça em um exercício de ver além do próprio umbigo e, com isso, ter a dimensão exata de si mesmo: “falível, transitório, transitivo”, como diz a canção.

A garota, por sua vez, talvez sentisse necessidade de ressaltar sua própria importância, em uma ânsia de se fazer maior, qual fosse ela o epicentro do universo. Como sempre, fui me deitar com mais perguntas que respostas. Uma delas ecoava: quanta solidão pode caber em uma selfie? Não sei por que, mas, naquele resto de noite, dormi tranquilo.

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