A valsa prosaica

“Documento, por gentileza”. São pouco mais de nove da manhã e o sol arde sob a águia de duas cabeças da Praça Zacarias. O porteiro do edifício Acácia sequer me deu a chance de chegar à porta do elevador antes de solicitar alguma forma de identificação – uma novidade desde a última vez em que estive no prédio.

Repasso o documento. A familiaridade com o público do local talvez já tenha lhe rendido um olho clínico: “Terceiro andar?”. Aquiesço e sigo em direção à porta de madeira do térreo. Atrás dela, a estrutura antiga de ferro do elevador se movimenta com a lentidão dos objetos – há muito – desgastados. Um vagar que destoa do ritmo da maior parte dos transeuntes do Centro da cidade. 

Andar por andar, as paredes nuas das entranhas do edifício vão surgindo por entre o metal tingindo de tinta prata fosca. No terceiro pavimento, a placa branca com os dizeres em verde esboça que cheguei ao local indicado. O tom frio e estéril das paredes e do piso também salienta o aspecto “médico” do lugar. 

Na sala de espera, a voz monótona da recepcionista é o único som preenchendo o ambiente. O procedimento é o exatamente o mesmo a cada novo paciente – alguém se levanta de seu assento, a porta da divisória plástica range nas dobradiças enquanto o sujeito adentra o recinto, e a ordem enfastiosa se repete: “Número 29, você entra quando o 28 sair”. Silêncio. Alguns minutos se passam até que a porta volte a ranger. Alguém se dirige à saída, enquanto outro alguém se levanta de seu assento. “Número 30, você entra quando o 29 sair”.

Da única janela existente, a tinta clara do prédio exibe uma coleção de manchas cinzas – água da chuva e fuligem, muito provavelmente. Distribuídos pelas cadeiras de plástico verde limão, ninguém parece se importar com a vista – ou a falta dela. A cena recende a uma valsa meio improvisada – cada qual acredita saber seu papel, mas desconhece o de seus pares.

São quase dez da manhã quando alcanço o calçadão da XV e seus vendedores de alfajor. Na tuboteca, alguém tentou se livrar de livros antigos de marketing. O motorista do ônibus buzina para um ambulante, que circula pela calçada com seu carrinho de panos de prato. Mulheres conversam sobre os estigmas dos regidos pelo signo de escorpião: “Nem melhor, nem pior que ninguém. Mas se aprontar comigo, não faço nada – a vida se encarrega”. 

Seguro nas mãos meu atestado de saúde ocupacional – aparentemente, nenhum dano físico proveniente do último trabalho. Observo a movimentação ao meu redor: uma concatenação de eventos orquestrada pelo desenrolar da vida, uma espécie de valsa meio improvisada. Corpos vagando por compassos ternários.

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