Deste lado da divisória

Joana, à minha direita havia um homem com uma figa da Guiné tatuada, o único indício possível e mais nada. Nos tornamos cúmplices pelo mínimo movimento comum entre ambos, cabeças que viravam com a maior dificuldade, sem que o resto do corpo pudesse acompanhar. Era um homem até que bonito. Nossas macas ficaram lado a lado por duas semanas e firmamos uma cumplicidade de canto de olho.

Você sabe que eu não falho com a fé e ao receber alta esbocei um sorriso de gratidão pela companhia silenciosa. No íntimo desejei que a fé não lhe falhasse também, apesar do pulmão reduzido a setecentas gramas de massa aquosa, absolutamente inútil.

Mesma sorte não teve a senhora da maca ao lado. A enfermeira a virou de lado para evitar escaras, um movimento delicado com força o bastante para avivar bolhas mortais. Desfaleceu virada para mim e ali ficou até que alguém atinasse para a delicadeza de fechar os olhos.

Baixar as vistas para o mundo, Joana. Isso não é tão banal quanto parece.

Essa ideia de que estar na beira da morte nos faria renascer por milagre é coisa de novela bíblica, jornada do herói e netflix. A vida da gente não é nada disso.

Reconheço meu quinhãozinho de sorte, mas agora subo as escadas com tanta dificuldade que não consigo sonhar um próximo carnaval.

Aliás, por falar em carnaval, você viu aquele pênis verde amarelo desfilando na avenida dos patriotas ? Acho que às vezes vivo num filme, não sei se isso também te ocorre.

Homens pequenos e a ditadura do faloceno. Como se o pênis também pudesse ser uma arma e no fundo desconfio que esse desejo não seja mais do que uma vontade de aniquilação.

Tenho andado com os medos mas sigo tentando me ter com esse corpo, agora que o verão se antecipa e existe essa abertura pairando nas cabeças. Uma metade do rosto é a máscara, a outra metade é uma possibilidade imaginativa. Nos tornamos um pouco mais estranhos uns aos outros, acho.

Sinto que já estamos mais próximas do outro lado da divisória, Joana. Entre o antes e depois, vamos nos retirando para seguir o resto da história, que não deve ser grande coisa, mas só o fato de termos chegado aqui apesar desse tanto já é motivo de celebrar.

Percebe que o rastro de feromônios nas esquinas? Acho que a catarse decorre dessa vida estreita, como se esses últimos dois anos fossem um sonho, um delírio coletivo que agora vai se desfazendo nas invocações do corpo. E se isso pega feito vírus, Joana?

Para estar atenta ao tempo é preciso apreender a qualidade do ar. Eu sei, não se pode apanhar o vento com as mãos. Talvez seja mais sábio usar saias e deixar que a brisa lhe sopre as boas novas.

Desejo, Joana, é um substantivo que também é verbo, embora ação de desejar ande meio rarefeita. Lembra aquele final dos anos 80,

“Você me abre seus braços e a gente faz um país?” a Marina cantando parecia uma grande abre alas carnavalesco, um prelúdio do vir a ser.

Agora tenho dúvidas, desconfio dessas vontades continentais, acho que já não comportaria tanto. Fazer um país é um ideal impossível, não quero caminhar nem cantar a canção fúnebre do futuro que não veio, mas a vida nos conclama e penso que é preciso estar à altura Joana, quem sabe fundar uma ilha, fincar a bandeira dos gestos mínimos, uma imensa delicadeza.

Cuidado com os escombros, muitas minas explodiram aqui. Não venha correndo de peito aberto, não será possível nenhum novo país. Tantas espécies desapareceram, o fogo aniquilou quase tudo.

Joana, pise devagar nesse chão. Não é preciso ter pressa agora que já sabemos que a esperança encerra tantos perigos. Será preciso reaprender a respirar o mundo, outra vez. Tire a máscara.

Atenta, Joana, atenta.

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