Aceita que dói menos?

Em 1954, Jacques Lacan profere uma conferência intitulada “Do símbolo e de sua função religiosa”. Até que é bem inteligível, vinda de quem vem – quem já teve a experiência de ler Lacan sabe o quanto a inteligibilidade não era uma de suas preocupações.

Mas em meio ao fogo no palheiro há agulhas preciosas – misturei fogo de palha com agulha no palheiro, né? – que enfim eu, pobre diabo que ainda se preocupa em entender as coisas, consigo colher e colocá-las para conversar com meu universo de referências, muitas das quais vindas da própria psicanálise.

Volto à conferência de Lacan, de onde extraio essa interessante sacada: “Se a descoberta de Freud faz algum sentido, só pode ser um. Quando o homem esquece que é portador da fala, ele já não fala. É efetivamente o que acontece: a maioria das pessoas não fala, elas repetem, não é exatamente a mesma coisa. Quando o homem já não fala, ele é falado”.

Ora, claramente, antes de falarmos, precisamos ser falados, precisamos nos encharcar de linguagem, precisamos saber quem somos e só nos descobrimos pelos olhares, toques e palavras do Outro. O que nós somos, curiosamente, é o Outro quem constrói, é o Outro quem tece, esculpe e escreve naquilo que, sem esse conjunto de afetos, é apenas carne crua e vida nua. Da escultura passamos à inscultura, da escritura passamos à inscrição, tomando do Outro algo que poderemos dizer a respeito de nós mesmos. Quando me apresento, digo, por exemplo, meu nome e sobrenome, o que faço, o que gosto de fazer. Quanto disso tudo eu devo ao Outro?

Depois, já sabendo que temos um corpo separado, tridimensional, reconhecendo-nos no espelho, podendo emitir linguagem, conseguimos cada vez mais nos subjetivar, ganhar status de sujeito. Isso significa a eliminação do Outro? Não. O Outro vive em nós, falando-nos. A começar pelo nome próprio, por um eventual apelido, pelas expectativas criadas, e pelo nosso modo de atender ou não a tais expectativas em troca de amor.

Esse Outro, com O maiúsculo, diferencia-se do outro, pessoa de ossos e carnes como nós, que também vivem seus conflitos, trabalham, amam etc. É uma espécie de discurso que infunde em nossa carne e subjetividade modelos de comportamento e pensamento, preceitos morais, noções de certo e errado, projetos de vida. Esses discursos Outros saem de representantes maternos e paternos e derivam para instituições maiores, como escola-professor, igreja-padre-pastor, livros etc.

Livrar-se do Outro é impossível. Mas há formas de ser em relação a ele que conduzem – ou seduzem – a modos diferentes de levar a vida. É mais comum do que se imagina sofrer psiquicamente devido ao fato de que o sujeito pode estar refém desse Outro, submetido ao seu gozo. E embotando o próprio desejo. Uma demanda de amor pode – estamos falando de funcionamentos inconscientes – iterar e reiterar intermináveis e repetidas fórmulas de adesão à vontade do Outro. Sofremos, sentimos angústia – que, diferente do medo, não tem objeto claro – e fica difícil conseguir desatar nós que, em vez de fazerem laço, enforcam.

A psicanálise fala muito em encontrar o próprio desejo deixando de ser objeto de gozo do Outro. Se cortar o Outro da vida é impossível, há formas menos abusivas de se relacionar com ele. “Ser falado” quando se nasce é inevitável, é o que dá corpo e palavra ao sujeito, mas continuar a ser falado por toda a vida, em detrimento do próprio desejo, aí a coisa se complica.

O mesmo Lacan, na mesma conferência de 1954, me fez encontrar outra de suas agulhas preciosas:

“Não basta aceitar uma coisa para entendê-la, não é? Digo mais, é até a melhor maneira de não entender nada. Depois de ter resolvido aceitar, ficamos desobrigados de qualquer exame! [Risos]”.

É de fato engraçado, mas sério também. Dá o que pensar sobre as diversas fés (plural perigoso que, quando é demais, não cheira bem*), sobre as diversas crenças cegas. Sim, parece lógico que ser refém do gozo do Outro (aceitar sem examinar/analisar) pode gerar sofrimentos psíquicos severos. Mas quem disse que não dói libertar-se desse gozo e sair em busca do desejo? Vale lembrar que o desejo não se deixa apreender, ele é o que gera movimento e co-moção, é o que transita e faz trajeto em meio às lacunas de que precisamos para criar deslocamento.

A última fala de Lacan, entre risos, me fez lembrar do conhecido “aceita que dói menos”.

Tanto a razão iluminista quanto o desejo psicanalítico, que em tantos aspectos se conflitam, estão em causa aqui. Aceitar a imposição do Outro como se fosse desejo do sujeito, assim como aceitar verdades sem submetê-las aos escrutínios da razão me parecem sinais claros de nosso tempo contemporâneo – sem de modo algum dizer que sejam exclusivos dele.

Em termos sociais e coletivos, temos sectarismos de toda espécie, fundamentalismos, teorias complotistas et cetera. No âmbito do sujeito e do indivíduo, depressões, distúrbios alimentares, angústia generalizada, medicalização da vida, et cetera. Uma clínica inteira de novos sintomas.

Desnecessário dizer que “sociais, coletivos” e “sujeito, indivíduo” são instâncias de um mesmo fenômeno visto de distâncias diferentes.

Aqui, as duas citações de Lacan convergem para nos fazer uma questão (Lacan faz questão de fazer questão): o quanto ser falado em vez de falar e o quanto aceitar sem examinar (pelo viés da razão ou da análise do inconsciente, escolha) está fazendo do mundo externo e do mundo subjetivo esse prenúncio do abismo?

Eu não sei o que dói mais e o que dói menos. Ser falado e aceitar nos poupa de decisões e nos torna vítimas repetidoras de gozos e desejos alheios e alhures. A um custo que pode ser alto. No entanto, apropriar-se – sem nunca se apoderar – do desejo e examinar verdades inconscientes também pode ter custo alto (e nem calculei aqui o valor das sessões). Não é fácil reconhecer e ainda sustentar o desejo.

Mas ninguém disse que viver era fácil. Se aceitarmos trocar fácil por interessante, talvez fique mais… ai, droga, talvez fique mais “fácil” buscar uma resposta para a questão a que nos levaram as malditas agulhadas de Lacan.

* Dois trocadilhos escatológicos e de quinta série ali: na minha cabeça, o plural de fé sempre desliza para fezes – o que pode ser um indício do que eu tenho na cabeça. Além disso, acho engraçada a cacofonia de “fé_demais não cheira bem”. Quinta série, eu avisei.

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