alguém nos ajude Lázaro

tava numa baia de chão de cimento e parede de tijolo, eu e uma galera, o clima meio tenso porque não podiam achar a gente. lá pelas tantas, subo na laje dessa baia e trombo um cara: ele me flagra, aperta o radinho no ombro, vira o pescoço pra dizer alguma coisa mas, antes de terminar, voo em cima e passo a navalha. lembro do vermelho, das sirenes, da vibração dos coturnos e acordei quando me ajoelharam. antes de sonhar essa fita, tinha lido a história de quatro irmãos que, depois de assistirem uma galinha sendo degolada na tevê, arrastam a irmã pra cozinha.

as férias acabaram e daqui pro trampo dá papo de vinte páginas no bonde. o centenário/campo comprido chega vazio no terminal e vou sentado, de fone, vendo as pessoas entrando e saindo até que quem sai sou eu. a padaria onde trampo abre às oito mas antes das seis já tem gente com a mão na massa, na máquina que enrola francês, no fogão que tem uma batedeira acoplada, no sensor que lê a digital do indicador direito e diz na tela quem é a pessoa. as mãos dizem muito sobre como tocamos a vida. às vezes mais do que as palavras. uma tarde, me viram tirando café em horário de pico: disseram que eu parecia o Doutor Octopus mas não boto fé em heróis.

pra voltar, mesmo bonde só que sentido contrário e esses dias entrou um senhor: carregava uma cesta com cocadas em um braço, arrastava um saco preto com o outro e achou lugar no espaço para cadeirantes. não consegui ver se vendeu algum doce mas vi que geral fez cara de ué quando ele desceu levando só a cesta. não sei se esqueceu, ou se queria deixar o saco ali. sei que ninguém disse ou fez qualquer coisa até que um piazão tirou os olhos do celular, deu um pulo, pegou a parada e saiu pela fresta enquanto a voz robótica dizia porta fechando. foi por pouco. foi cena rara.

saiu no El País que uma galera lá na Austrália achou um tal de rato-de-Gould na floresta. papo de cem anos que ninguém trombava o roedor e o nome desse rolê é efeito Lázaro, que é quando animais ou plantas extintas são vistas de novo. em 1979, encontraram nas Ilhas Maurício uma flor que desde 1940 já não brotava. chama cafe marron mas é branca e parece uma estrela do mar. só reconheceram as pétalas na beira da estrada porque lembraram de uma pintura dessa flor mas fiquei de cara: a muda foi levada pro jardim botânico do Reino Unido. também não boto fé em coroas. boto fé que somos ilhas, que formamos arquipélagos.

de bike fiz em quarenta minutos. atravesso o Cajuru, o Capão da Imbuia, passo entre o Jardim Botânico e o Cristo Rei e depois do Centro chego no Bigorrilho. pedalar de máscara é osso então vou mais devagar, zero pressa de morrer mas quase me arrebentei. pra quem curte fazer tipo velocross e ir rampando as paradas, a ciclovia da Affonso Camargo tem bastante raiz de árvore saindo do asfalto. raiz é um bagulho loco: algumas são tão zica que perfuram materiais metálicos e isso me faz pensar que água mole pedra dura, que árvores são como pessoas, que a alma flutua, que o corpo precisa de alimento e que, dependendo do livro, uma arma você compra com o décimo do preço desse livro.

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