Não adianta soprar

A fotografia da morte adentrou pelo século 20 com fulgor e novos hábitos surgiram

Quando as fotografias de homicídios dos centros urbanos começaram a ilustrar as manchetes dos jornais americanos e ingleses no início do século passado, o cotidiano das pessoas foi enriquecido com fatos e fotos perturbadoras das mazelas sociais de suas comunidades. A vida possuía agora a fotografia para comprovar que a história contada por fulano foi mesmo feita por cicrano.

O mesmo jornal, lido nas primeiras horas da manhã, também era utilizado para embrulhar carnes e peixes nos açougues e feiras pela cidade. O sangue dava o toque colorido e tridimensional aos crimes ali retratados em preto e branco. As pessoas desembrulhavam as compras na cozinha, e o jornal agora borrado, molhado com fluidos mortuários, era jogado ao chão para que seus gatos e cachorros se aproveitassem das sobras, comendo junto às folhas sujas, a fotografia da manchete do dia. Essa rotina permaneceu por décadas. A crueza da vida estava em toda parte. 

A fotografia da morte adentrou pelo século 20 com fulgor e novos hábitos surgiram. A partir destes, necessidades foram e continuam sendo criadas, ampliando a curiosidade sem nenhuma pompa nem cerimônia. Com a imagem na retina, uma energia soturna invadia o inconsciente de todos nós. Toda imagem seduz, nos chama para vê-la.

Quanto mais hediondo o crime, mais surrealista a imagem da brutalidade se apresenta aos olhos. Sua repetição de minuto a minuto nos canais e plataformas ditos oficiais de notícia confere o tom da trivialização das agressões humanas. Seria como se disséssemos que a morte é uma fantasia, e como tal tende a se tornar afeto, valor social e pessoal. 

É nesse ponto que o cinema reina absoluto. Empresários visionários privatizaram a fantasia da morte, transformando-a em produto de consumo rápido, uma fonte inesgotável de produção de prazer, poder e ganhos financeiros.

No cinema vamos além do Narciso de Caravaggio; o nosso duplo, este que anda, fala e pensa por nós. Portanto, ele também mata por nós, e o prazer é dividido entre todos. O duplo é um mito universal, o vemos nos reflexos, nas sombras, nos sonhos, nas pinturas, no celular. O imaginário é constitutivo da realidade humana desde os tempos imemoriais. Na inquietude da descoberta de si, transferimos e fixamos nossa imagem em argila, madeira, osso e pedra, criando o que hoje chamamos de “conteúdos simbólicos”. Precisamos dessa fantasia realista para suportar o nascer e morrer de todos os dias.

O consumo da violência artística da morte é um dos pilares econômicos do nosso tempo, e a produção de conteúdo mórbido é incessante. O melhor exemplo disso são as séries (que nada mais são que filmes sem finais definitivos – atrasar o acontecimento da morte), suprem as demandas do consumo doméstico da violência. Nessa experiência viva de si mesmo, o homem projeta suas dores, temores, desejos e amores, sua bondade e sua maldade. 

Edgar Morin em seu livro O Cinema ou o Homem Imaginário reflete acerca da imagem sedutora consistindo na banalidade, ele diz que “Lumière teve a intuição genial de filmar e projetar como espetáculo o que não era espetáculo: a vida prosaica, os transeuntes e seus interesses. Ele compreendeu que uma primeira curiosidade era dirigida ao reflexo da realidade; que as pessoas, antes de qualquer coisa, se maravilhavam ao rever o que fora dali não as deslumbrava: suas casas, seus rostos, o cenário de sua vida familiar”.

Elevamos esse deslumbramento a potência máxima ao aceitarmos: violência doméstica, estupros, feminicidios, estrangulamentos, torturas e inúmeras parafilias como sendo cenas de situações corriqueiras e interessantes. É no mínimo uma afirmação que adoramos que a violência seja feita no corpo do outro, desta forma o nosso permanece em segurança, preservado da dor.

Este corpo de outro, que não nos pertence, é mostrado em close lentamente, insinuando que tudo não passa de um sonho. Sem a morte não há o contraponto que justifique a vida e os atos do (s) personagem (s) apresentada (os) na tela. Nosso Eros e Tânatos numa mimese visual induzida em busca de gozo, numa velada hipocrisia surrealista.

Sendo o cinema imagem e palavra, me faz lembrar de uma reflexão de Lacan que cabe nesse artigo, “a ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais, mas essa própria crueldade implica a humanidade”. O público (cinema/salas) e o consumidor (streaming/casa) são cúmplices inconscientes desta ação sombria, muitas com o título de “baseado em fatos reais”, o que endossa o gozo coletivo, numa espécie de fotogenia das sombras. Adoramos violência.

Onde apenas moravam os anjos, os demônios e os deuses, com o cinema, a morte têm as mais sofisticadas plataformas de comunicação, reflexão e entretenimento.

Até a próxima semana!

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