Dia 1 – Eu e Gravetos

Sandi Bart começa a narrar a história de sua quarentena

Tenho só uma vaga noção de como vim parar aqui.

Adoraria dizer “permita-me apresentar, caro leitor”, e desfiar uma série de credenciais literárias, grandes feitos, talvez um ou dois prêmios relevantes, no mínimo uma música gravada em 1998 que tivesse tocado bastante na rádio e ainda causasse nas pessoas alguma lembrança longínqua de um refrão ruim. Não tenho nada disso.

No máximo posso dizer que quando mais jovem eu: a) tinha um respeitabilíssimo bicudão de direita; b) conseguia tocar o hino nacional quase afinado usando as mãos como uma rudimentar ocarina; e c) sobrevivi à gripe do porco, sendo esta última a provável razão pela qual fui convidado a escrever para o Plural.

Como um veterano, esperava poder apenas contar para as gerações futuras sobre aqueles terríveis dias de confinamento, febres e medicamentos. Nenhum veterano espera que outra guerra vá explodir ali tão logo, na próxima esquina. Menos ainda que será convocado. Mas fomos. Eu e vocês, todos.

Hoje foi meu primeiro dia de home office, essa expressão tão moderna, tão google, tão tecnológica. Como tá a rede aí, pessoal? Faz chamada de vídeo coletiva, tudo funcionando, então bora botar o pib pra subir. Contei para minha mãe, ela sábia e jocosamente respondeu que já faz home office há décadas, desde que parou de fazer roça office e veio para a cidade.

Minha mãe é uma mulher engraçada.

Trabalhando de casa, e tentando não dar atenção demais à paranoia ou à hipocondria, acesso os sites oficiais do governo, esse governo tão apegado à ciência, para ver as últimas contagens de mortos e feridos. Fecho os sites para não dar atenção demais à paranoia ou à hipocondria.

À tardinha dou por encerrados os trabalhos que desenvolvi ao longo do dia sem sucumbir aos pedidos insistentes de carinho da gata aqui de casa. O nome dela é Julieta, mas eu a apelidei de Gravetos, já que sua natural tensão não permite que ela relaxe nunca suas finas perninhas de gata tensa, mesmo quando quer carinho.

Ligo por vídeo para meu afilhado. Aos três anos suas preocupações não alcançam a gravidade da pandemia. Ele me mostra suas pinturas, seus carrinhos, seu gato, seu estetoscópio. Por vídeo mesmo ele me oferece uma consulta grátis, mede minha pressão e escuta meu coração. Aparentemente estou bem. Por vídeo mesmo mandamos beijos e abraços, e por vídeo nos despedimos.

Que venha o fim de semana, que os idosos não sejam contaminados em massa, que o presidente pare de negar a ciência (ou no mínimo aprenda a colocar uma máscara direito, para seu próprio bem e dos seus), que eu possa logo abraçar novamente meu afilhado, que a guerra acabe cedo e a gente sobreviva a mais esse fim do mundo.

Se tudo correr bem logo estarei por aqui novamente. Mas agora Gravetos veio novamente pedir colo, e agora eu posso. Por favor, lavem bem as mãos.

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