Mohamed Mbougar Sarr escreve manifesto contra o horror

Escrito na Europa, "Homens de verdade" se passa na África e retrata a perseguição e a violência contra a comunidade LGBT

Este texto fala sobre o livro “Homens de verdade”, de Mohamed Mbougar Sarr, publicado pela editora Malê.

Lá pelo ano de 1928-29, Yourcenar escreveu um livro como resposta a outro, um livro de Gide chamado “Tratado do vão desejo”. Yourcenar deu ao livro o subtítulo “Tratado do vão combate”. Nesse tempo, Gide já havia escrito “Corydon”, entre 1911 e 1920, e causado um certo furor nos meios literários franceses. Claro que os franceses já conheciam muito bem Rimbaud e Verlaine, e claro que tradutores de diversas línguas tentavam trocar nomes de personagens da literatura greco-romana de Augusto para Augusta, de modo a naturalizar uma união amorosa qualquer.

Mas muita água iria rolar por baixo dessa ponte até que novos tradutores e historiadores tivessem uma noção mais clara desse tipo de relação: de repente, a citação ao amor urânico (para Gide), “que não diz seu nome” (para Wilde), homossexual (para a nova medicina), contra naturam etc. era não mais que um deboche, como se vê numa penca de autores latinos, como Catulo. Ou seja, nem seria necessário que tradutores se dessem ao trabalho de trocar nomes ou reescrever um poema antigo para esconder e disfarçar algo que já para os gregos e latinos era algo estranho ou discutível e motivo de escárnio. Que trocassem os nomes de poemas que verdadeiramente endeusassem o amor entre homens ou mulheres. Deboche ou amor erótico consumado, a questão ainda está aí, com novos nomes e discussões, como novas acepções e entendimentos.

Muita coisa seria escrita depois de Gide, obras que viraram “classicões” da literatura homoerótica, como Giovanni (Baldwin) ou A cidade e o pilar (Vidal), Brideshead revisitada (Waugh), ainda com uma pegada bem negativa em relação ao homoerotismo, mostrando – triste, amargurado, perseguido, marginal. E mais água ia rolar até que alguém resolvesse escrever algo em que o homoerotismo não seria motivo de sarcasmos, ironia, deboche, tristeza ou ainda algum modo de dividir culpas e procurar, no passado, outros culpados, fosse Alexandre ou da Vinci. Décadas eu diria… e mesmo hoje a tendência é falar da época da Aids ou ainda mostrar a perseguição, como é o caso de “Brokeback Mountain”, o conto (e, depois, o filme), ou ainda o universo homoerótico como engraçado, carnavalesco, debochado, alienado.

Mohamed Mbougar Sarr

De todo modo, é muito doido que, quase cem anos após o “libelo” de Gide (é assim que ele o chama, tendo o livro completo sido publicado somente em 1924), um autor como Mohamed Mbougar Sarr venha discutir coisas semelhantes – e ainda ter de construir um romance como fosse um libelo ou ainda um ciclo de discussões filosóficas sobre o homoerotismo. Mas aí cabe uma explicação: lá pelo meio do livro – daí que começo a escrita desse textinho – Sarr fala em “vão combate”, um eco voluntário ou involuntário de Gide. E parece que o combate é vão mesmo, ao menos em relação à violência sofrida pelas comunidades LGBT no mundo todo. Se na África pode-se desenterrar um cadáver pelo fato de ele ter sido homossexual em vida, o Brasil não fica atrás, sendo um dos países do mundo em que mais se matam sujeitos da população LGBT. E daí a importância da obra de Sarr. Escrita na Europa, mas deslocada para a África, a obra é um grito contra o horror.

Um amigo comentou que o discurso da personagem principal, Ndéné, é “deslocado da realidade”, pois “ninguém fala assim”. Em sua defesa (da de Sarr e da personagem), eu comentei e comento que ele é um professor de Letras, também perseguido não pelo fato de ter práticas homossexuais (ao menos até o ponto em que a narrativa se dá), mas pelo simples fato de ter ensinado Verlaine numa aula e pelo fato de haver comentado que a proibição a autores homossexuais numa faculdade era “algo idiota”. Dizendo isso, ele provocou uma espécie de “fatwa”, desdizendo e indo de encontro às palavras dos líderes muçulmanos de seu país. O Senegal, por mais que tenha um sistema legal que proteja o indivíduo, não consegue combater o ódio – extremamente violento – com a população LGBT. Nada muito diferente da situação brasileira. Lá, como aqui, as contradições são grandes: ao mesmo tempo em que gays são mortos ou, arrancados de seus túmulos, o livro mostra como uma travesti pode ser uma personagem amada no país todo…

O livro de Sarr, por diversos motivos, é, portanto, um livro corajoso. Embora escrito na França e lá publicado, ele toca em várias feridas universais. A violência do Senegal não é invenção africana, vale dizer, e a Europa, tão branca, rica e culta, também vive diversas violências, e as pratica. O livro de Sarr é corajoso também porque, mesmo fora do Senegal, ele mostra um autor que não teme represálias. E ele, em seu país, poderia ser morto. Não vou compará-lo a Rushdie, pois a situação realmente difere, mas confesso que pensei muito na possibilidade de uma comparação. E estamos na terceira década do terceiro milênio…

Ndéné é professor de literatura, e filho de um homem muito respeitado na comunidade islâmica. Tem uma relação com uma mulher bissexual, vive algumas frustrações típicas do meio intelectual (lá, como aqui, a universidade é cheia de panelas que impedem produções mais alentadas…), tem uma vida confortável num país pobre, “vai vivendo”. Até que um dia vê o vídeo de um cadáver sendo arrancado da cova, de um cemitério muçulmano. Essa situação bizarra e violenta acende alguma luzinha lá dentro dele e daí se desencadeiam diversas situações violentas: da violência física à simbólica, tudo que gira em torno de um homem homossexual fica como que tocado por uma mácula ou se transforma numa ferida incurável.

Meu amigo não está totalmente incorreto. É bem possível mesmo que algumas passagens fiquem distantes de uma realidade discursiva do dia a dia. No entanto, o romance é muito engenhoso, porque constrói um cenário bem amplo dos absurdos que a população LGBT sofre na maior parte do planeta.

Seguro, bem planejado, coerente. A leitura chega a ser obrigatória para quem estuda os fenômenos ligados ao universo LGBT, literatura africana moderna, novas vozes do romance em francês, vozes negras, contradições discursivas no seio das práticas religiosas, etc.

A tradução coube ao competentíssimo Fernando Klabin, que soube como poucos verter ao português as oscilações do palavreado de Sarr, que vai do mais popular ao mais erudito. A Malê, que aconselho muito, precisa, no entanto, de um designer urgente e de um revisor, que nem cita quem é. Talvez porque não exista.

Um livro necessário e urgente.

*

O leitor mais experiente vai encontrar muitos segredinhos na escrita de Sarr. É delicioso como ele, também um estudioso de literatura, coloca inúmeras referências literárias nos diálogos. Tem Buzzati, tem Kaváfis, tem Gide, tem Verlaine (literalmente), e o que você puder achar mais.

*

Sarr ganhou o mais recente Goncourt, com o livro “La plus secrète mémoire des hommes”, que a editora Quetzal vai publicar ainda este ano em Portugal. Seu outro livro famoso é “Terre Ceinte”, ambos só disponíveis em francês, espanhol e alemão, e talvez inglês. Uma pena. As editoras brasileiras não têm interesse na obra dele ou não conseguiram subsídios para traduções dessas obras.

*

Depois de escrever este texto, lembrei que não ganhei o primeiro prêmio de contos de um importante concurso brasileiro porque minha personagem era gay. O presidente da mesa achou que: a) não poderiam premiar um texto homoerótico; b) segundo ele, seria impossível um gay ser feliz – e meu conto era sobre a felicidade.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Há saída para a violência?

Há que se ter coragem para assumir, em espaços conservadores como o Poder Judiciário, posturas contramajoritárias como as que propõe a Justiça Restaurativa

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima