A escrita de Jordi Soler tem uma técnica de investigação das coisas do mundo que se distende até chegar às raias do fantástico. Em outras instâncias e momento, isso tinha sido tentado com certo maravilhamento por autores como Lezama Lima e Alejo Carpentier. Então, não estranhe se ouvir ecos desse tipo de escrita (lá dos anos 1950-60) ao ler Soler. O interessante é que, ao se distanciar de outras formas de narrativa em espanhol nas Américas, Jordi repagina — e refina também — o que há virou uma tradição em certa corrente literária hispano-americana.
Jordi Soler
Há quem observe na obra dele o realismo mágico, mas ele lembrará mais Isabel Allende que García Márquez, com certeza, e tenho cá comigo que esse realismo construído pelo Jordi tem mais a ver com o realismo sul-americano (um neorrealismo, se preferir) do que com o fantástico ou o mágico. De repente, basta uma floresta, uma vila interiorana e alguns acontecimentos estranhos para chamar a isso “mágico”, mas talvez sejam apenas uma floresta, uma vila interiorana e alguns acontecimentos estranhos mesmo, como uma mulher considerada louca presa a uma corrente numa casa do interior de um país latino.
Outro fator de interesse é a origem catalã do escritor, que nasceu em La Portuguesa, Veracruz, México, filho de dissidentes. Em particular nesse livro, há o ar de afastamento típico dos desterrados — e a mulher enlouquecida que percorre toda a narrativa torna-se emblemática: há um quê de loucura e estranhamento na vida dos desterrados catalães no México, “espanhóis que mais uma vez chegam à terra que não é deles, tentar plantar algo, não sendo nem uma coisa nem outra”. Mas são, sim, algo invasores, mas invasores de uma terra já massacrada e dominada há/havia séculos pelos antepassados europeus, terra regada a sangue indígena e negro. Atente para o fato de que são catalães e não exatamente espanhóis. É como se fossem duplamente desterrados.
Linguagem elegante
A linguagem de Soler é incrivelmente elegante e seu olhar é atento a pormenores. Autor pouco lido no Brasil, passou da hora de haver mais traduções de sua incrível obra. Volta e meia leio as mesmas críticas dirigidas a García Márquez voltadas a Soler: que sua obra não teria um engajamento político e se pautaria mais pelo exótico. Olha, acho que não leram nem num nem outro direito. De todo modo, mesmo que sua obra fosse “apenas pautada” pelo exótico, já seria uma obra e tanto. Autores tão distintos como Pamuk e Petruchévskaia escrevem coisas “desengajadas” (aparentemente) e que obras eles escrevem!
Dentre outros estudiosos do romance latino-americano, está Daniel Balderston, que editou o rico The historical novel in Latin America (Hispamerica, 1986). Nessa obra, vários estudiosos avaliam certo romance latino-americano pós anos 1950 que seriam um novo tipo de romance histórico, e com vários entrelaçamentos com o realismo mágico. Então, Jordi seria um escritor tributário de Lima e Carpentier, já citados aqui, que escreveram obras “históricas” com fortes laços com o chamado realismo mágico.
De todo modo, longe da tentativa de uma classificação vazia, leia a obra e tire suas próprias conclusões. É intrigante.
É bastante interessante, também, observar como esse tipo de romance fez muito sucesso em espanhol, mas não em português. Reforço sempre que o fato de não encontrarmos certo tipo de romance no Brasil tem tanto a ver com a falta de interesse dos escritores como a falta de interesse de o mercado publicar certo tipo de romance. Não quer dizer que não exista(m).
“A última hora do ultimo dia”
No Brasil, a Record publicou “A última hora do último dia”. Já outros romances de Jordi, apenas em espanhol. A Cúspide (Argentina) e a Casa del Libro (Espanha) têm interessantes promoções para quem – de tanto amar – deseja obras não encontradas aqui. No mais, Mercado Livre e Estante Virtual.
Alguns amigos hispano-falantes discordam, mas acho que ele lembra bastante Álvaro Mutis. Para mim, isso é muito bom.
Sobre o/a autor/a
Benedito Costa
É doutor em Literatura e apaixonado por livros (história, materialidade, conteúdo). Sempre à caça de novos autores, títulos, lugares e formas da escrita literária.