Viagem aos tempos de pandemia

O livro de Daniélle Carazzai e a dramaturgia das companhias Súbita, Pé no Palco e Sim surpreendem pela intensidade e força do amor à arte

É um espanto, esse livro de Daniélle Carazzai. Li duas vezes – e ainda não entrei em todas as camadas da narrativa. É curto, é intenso, é o primeiro livro de Dani, e surpreende bastante.

“Aqui tudo é pouco” é um romance epistolar. São três contos, ou capítulos, que se entrelaçam por meio de cartas e fatos reais de diferentes épocas. Tempo é uma palavra que importa nesse livro. 

Inácio é personagem que protagoniza o primeiro capítulo/novela e também o último, que se passa no futuro.

Fui no lançamento, e Dani contou que o personagem é uma homenagem a Ignácio Loyola Brandão, autor favorito dela. Perguntei como é escrever, na primeira pessoa, personagens masculinos; Dani respondeu que para ela “é normal”; coisa que me causa inveja. 

Escrever se colocando no papel de outro gênero é difícil. Ian McEwan, um autor que eu venero, escreve muito bem personagens femininos, tanto na primeira pessoa como na terceira. Para mim,  conta muito quando uma escritora consegue fazer isso. 

O tempo, sempre ele, é tratado em “eras” por Inácio no primeiro capítulo, intitulado “Ausente”. “Inventei uma forma de falar sobre a passagem do tempo (…). Hoje, por exemplo, foi o dia de são paulo (…). Amanhã será o dia dos moinhos”. Pangeia é a era em que ele toma posse de uma casa. E tudo se passa durante a pandemia, muito mais severa do que a que vivemos.

Sim, o livro foi escrito durante a pandemia. Dani foi aluna de Julie Fank na Escola de Escrita em 2020. O livro, editado pela Arte&Letra, traz uma bonita ilustração de André Coelho na capa.

Durante a tragédia que ocorreu no romance, devido ao vírus mortal, um personagem se torna coveiro no segundo capítulo. “José precisou afiar todas as pás hoje. O solo está muito seco para sepultar essa quantidade interminável de corpos. Tem mais pretos do que brancos. Acabou a pilha do rádio e não vai dar para ele saber se chove amanhã. (…) Há cinco anos, José perdeu os dentes. Não come carne desde então “. Assim abre “Entregue”. Este foi, para mim, o melhor capítulo.

Não é narrado em primeira pessoa como o primeiro. Nele, entra Sara, a primeira mulher da obra. E a carta que encerra este capítulo é uma revelação (sem spoilers).

A terceira parte, “Desconhecido”, envereda por uma narrativa que me pareceu ser de ficção científica. Traz uma carta dirigida a Nina, personagem que aparece na carta do segundo capítulo, e é assinada por Inácio (o mesmo?). Essa parte, confesso, não entendi muito bem, ou, necessito reler mais uma vez para captar o que a autora quis transmitir. 

Dani Carazzai é uma autora que promete muito. Que venham mais livros!

Teatro pós-pandemia

Nesse período, tenho ido ao teatro sempre que consigo. Já escrevi sobre “O Universo Está Vivo Como Um Animal”, do Rumo de Cultura, na última coluna. “Aqui – Amanhã é outra imagem”, da Súbita Companhia, e “Nave Mãe “, da Pé no Palco e Sim Companhia de Teatro, são duas peças que assisti recentemente. 

Mais uma vez, as mulheres arrasam! Maíra Lour, Patricia Cipriano, Vanessa Corina, Fátima Ortiz e Helena de Jorge são os nomes que mais se destacaram para mim.

A dramaturgia é assinada pelos coletivos. “Aqui”, inspirada na frase/música de Leonard Cohen – há uma rachadura em todas as coisas, é por onde entra a luz – vem sendo gestada desde 2019 e foi interrompida pela pandemia. Maíra Lour, diretora,  indicou os filmes feitos durante a pandemia. Podem ser vistos no YouTube da Súbita.

“Aqui – Amanhã É Outra Imagem”, da Súbita Companhia

Eu assisti todos, depois de ver a peça, e é nítida a evolução da dramaturgia. Os filmes são ensaios – não de “Aqui”, mas de cada ator/atriz/autor. Funcionam como adendos à obra final, que é arrebatadora. 

O cenário de Fernando Marés, e a iluminação de Beto Bruel e Lucri Reggiani, são incríveis. A encenação é como uma dança coreografada, onde atrizes e atores expressam todo o sofrimento e indignação que a pandemia trouxe a quem vive, respira e ama a arte. No fim, a redenção.

Já em “Nave Mãe” a pegada é outra. Cada atriz/ator rememora a infância e homenageia/lembra/critica/xinga – e ama – a própria mãe (ou avó). É muito emocionante. 

Destaque para a diretora Vanessa Corina, que também atua, e para a sempre maravilhosa Fátima Ortiz, de quem sou fã há mais de quarenta anos. Pedro Bonancin faz um trecho sensível e tocante sobre a juventude dele. É excelente.

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