Apoio a Arthur Lira é aceno à conciliação

Enfrentamento não é revolução. O PT nunca foi um partido revolucionário, nem mesmo socialista. Sua “vocação” sempre foi reformista

Parte expressiva dos partidos que compõem a Frente Ampla responsável pela vitória de Lula, incluindo o PT e o PSB do vice Geraldo Alckmin, anunciou seu apoio, na terça (29), à reeleição de Arthur Lira (PP) para a presidência da Câmara dos Deputados.

Pesou, entre outros, o fato de que a recondução de Lira ao comando da Câmara já está praticamente garantida, e a equipe de transição depende de sua boa vontade para aprovar medidas consideradas importantes para o futuro governo. Assim, Lula e seu entorno decidiram que o melhor agora é tentar manter uma boa relação com o deputado alagoano.

Pragmática, e eu diria, excessivamente pragmática, a decisão de antecipar o apoio me preocupa. Não é mau agouro, mas como diz a sabedoria popular: gato escaldado tem medo de água fria.

A conciliação foi uma das principais marcas dos governos petistas. Os resultados foram desiguais. Avanços sociais significativos como, por exemplo, a diminuição dos índices de pobreza e a retirada do Brasil do Mapa da Fome, coexistiram com os lucros pornográficos dos grandes bancos e o enriquecimento escandaloso dos já muito ricos.

Se os governos petistas fizeram questão de assegurar e, em alguns casos, ampliar os direitos das chamadas “minorias”, as políticas de inclusão caminharam pari passu com a presença e o protagonismo cada vez maiores de grupos conservadores no debate político e lideranças evangélicas ocupando cargos no governo.

A tentativa de conciliar interesses e demandas contraditórias, quando não antagônicas, produziu um outro ornitorrinco, imagem emblemática a que recorreu o sociólogo Francisco de Oliveira para definir, em ensaio fundamental, as muitas contradições do Brasil contemporâneo.

Alguns resultados desse tour de force ideológico, a médio e longo prazos, foram desastrosos. De um ponto de vista institucional, o PT aprendeu (aprendeu?) da pior forma o quanto pode pesar a conciliação desmedida.

Em 2016, Dilma sofreu impeachment, em um dos mais sórdidos episódios da história política brasileira. No ano seguinte, Lula é preso e sua prisão, sem provas e com participação especial do STF – esse mesmo que os bolsonaristas agora amam odiar –, foi decisiva para garantir a eleição de Bolsonaro em 2018.

Recusa ao enfrentamento

Um dos efeitos mais perversos das políticas de conciliação dos governos petistas foi o quanto, para mantê-las, o partido precisou recrudescer uma escolha já colocada, pelo menos, desde a “Carta aos brasileiros”, de 2002: a recusa sistemática ao enfrentamento.

E não, enfrentamento não é revolução. O PT nunca foi um partido revolucionário, nem mesmo socialista, apesar do que falam seus detratores de direita e os golpistas de verde e amarelo. Sua “vocação” sempre foi reformista.

Mas isso não o impediu, até pelo menos meados dos anos de 1990, de articular, habilmente, sua inserção na política formal, ocupando espaços em parlamentos e governos municipais, principalmente, e o enfrentamento de questões sensíveis.

Não casualmente, nos seus primeiros anos, foi o PT quem agregou e, em larga medida, pautou, as demandas de movimentos sociais os mais diversos.

A mudança gradativa em direção ao centro, consolidada com a primeira eleição de Lula, endureceu, de um lado, a opção pela via única da política institucional e, de outro, seu afastamento dos movimentos sociais, muitos deles esvaziados e desmobilizados, e alguns perseguidos e criminalizados, justamente nas gestões petistas.

Volto à questão colocada antes: enfrentamento não é revolução ou ruptura. Ele é um esforço estratégico no processo de consolidação não somente da democracia formal, essa mesma que esteve por um fio, mas de uma cultura democrática efetiva, essencial, inclusive, à manutenção daquela.

Em mais de uma década, e gozando, especialmente nas gestões de Lula, de amplo apoio popular, os governos petistas não enfrentaram questões como a taxação de grandes fortunas, dos lucros e dividendos; a regularização das mídias; a descriminalização do aborto; a instituição de novas políticas de segurança pública; e a revisão de nossas políticas de esquecimento e dos muitos entulhos autoritários, como a Lei de Anistia, que dificultam o confronto com nosso passado autoritário.

E não que o PT encontrou dificuldades. Esses e outros temas não foram sequer objeto de interesse ou de discussão. No caso da segurança pública, por exemplo, as políticas petistas deixaram o legado nefasto de uma legislação repressiva e punitivista, de que a explosão da população carcerária e a Lei de Drogas são apenas dois exemplos.

De consumidor a cidadão

E qual a relação disso com o anunciado apoio à reeleição de Arthur Lira à presidência da Câmara dos Deputados com que abri essa coluna? Eu chego lá.

O PT e os petistas se orgulham, com razão, das políticas públicas de inclusão social e da diminuição dos índices de miséria durante suas gestões. Mas o não enfrentamento de questões cruciais, se atendeu necessidades urgentes, nos custou caro nos anos subsequentes.

No momento em que precisamos, a ausência de uma base social alicerçada e – desculpem se me repito – de uma cultura democrática cimentada, gestaram aberrações como a moralização da política, de que a panaceia anticorrupção, o lava-jatismo e o antipetismo são crias diretas, e fizeram o parto do autoritarismo e da violência fascista a que assistimos, estarrecidos, nesses últimos quatro anos.

As políticas de conciliação criaram consumidores, mas agora, nesse momento em que vivemos uma overdose de patriotas, nos faltam, fundamentalmente, cidadãos. E é de cidadãos que precisaremos para frear o avanço do bolsonarismo até a sua derrota, que começou, mas está longe de terminar, com a vitória de Lula nas urnas.

Líder do Centrão, Arthur Lira desempenhou papel crucial na ascensão e consolidação de Bolsonaro e do bolsonarismo.

Sua atuação como presidente da Câmara dos Deputados foi marcada pelo autoritarismo, a perseguição a lideranças de oposição e a instrumentalização do parlamento em benefício do governo. Foi Lira quem garantiu a aprovação da “PEC da bondade”, autorizando gastos de R$ 40 bilhões acima do teto para tentar assegurar a reeleição do fascista.

É ele quem comanda, junto com Bolsonaro, o “orçamento secreto”, um robusto e eficiente esquema de corrupção que passamos toda a campanha denunciando.

O apoio antecipado a Lira, sob a justificativa de que o momento é “delicado”, não ameniza as dificuldades, antes, torna o momento ainda mais delicado. Na prática, sem nem ainda se efetivar como governo, a frente ampla chancela, legitima e fortalece, em uma posição estratégica de autoridade, uma liderança que é parte do problema a ser enfrentado.

De novo, a anistia?

O PT e seus aliados deveriam correr o risco de lançarem uma candidatura própria, mesmo sabendo da pouca possibilidade de vitória e apenas para marcar posição política? Não tenho resposta para isso.

Minha questão é outra. Estou preocupado com o quanto essa aproximação sinaliza uma pré-disposição do futuro governo em repetir os equívocos já conhecidos, e que venho chamando aqui de conciliação.

Não há dúvidas de que combater a miséria e garantir a brasileiras e brasileiros o direito mínimo de acesso à comida é uma tarefa das mais prementes.

Mas esses quatro anos nos mostraram que é igualmente impreterível desmontarmos as bases sobre as quais se construiu esse imenso edifício de ódio, violência e intolerância que são a marca do bolsonarismo.

Não voltaremos a ser um país apenas com comida à mesa, insisto, por inadiável que seja essa tarefa.

Na esfera institucional, é preciso desmantelar a legislação neoliberal bolsonarista, cujos tentáculos se espraiaram e afetaram áreas tão diversas como os direitos trabalhistas, as políticas ambientais e a educação, além de produzir as condições para discutir, democraticamente, temas negligenciados pelos governos anteriores.

Tampouco há lugar para o humanismo pietista com quem conspirou para destruir a democracia, espalhar mentiras, cercear liberdades e negar direitos os mais elementares, inclusive o direito à vida, perseguindo, agredindo e assassinando opositores e legitimando a política de morte bolsonarista durante a pandemia.

É preciso atacar de frente a verdadeira organização criminosa criada para dar suporte ao projeto autoritário do bolsonarismo, que transformou a milícia em forma de governo.

Isso tudo significa enfrentamento político, dentro e fora dos espaços governamentais. Não é pela conciliação que superaremos a herança do governo Bolsonaro, tampouco criaremos as condições para derrotarmos o bolsonarismo. Estamos longe, é verdade, da cultura democrática que mencionei várias vezes antes, mas é preciso começar por algum lugar.

Por isso me preocupa a aliança – porque é disso que se trata, no fim das contas – com Arthur Lira. Espero, muito, estar errado. Mas temo que o aceno a Lira seja o indício de que voltaremos a nos ver com aquela anistia ampla, geral e irrestrita já nossa velha conhecida. Não seria exatamente uma surpresa, mas, nem por isso, menos decepcionante.

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