A revelação

Percorro as distâncias dos enormes painéis tal qual a mão do artista percorreu minuciosamente, a cada traço, o apocalipse que se dispôs a relatar. Um embate tão simultâneo àquele que eu mesma, há poucos minutos, travava com os meus filósofos

Semana passada, imersa em leituras para uma iminente prova de filosofia, numa tarde quente dessas que prenunciam um verão tempestuoso, fujo de meu apartamento povoado por humanos, felinos e dispositivos eletrônicos em busca de algum silêncio nas escadarias do museu para estudar. Não o encontro: são barulhentos esses pensamentos que habitam os livros. Entre os filósofos pré-socráticos e os iluministas, atravesso uma batalha de Titãs. Quem vencerá: a civilização ou a natureza?

(Como saber se mal podemos responder qual parte de nós habita os dois lados dessa tênue fronteira?)

Entro no museu em busca do ar fresco de alguma paisagem que me console. Não espero encontrar lá muito mais do que o vazio das exposições já esquecidas que antecedem a próxima explosão colorida que será lançada, em breve (anuncia a fachada) sobre nós.

E assim, sem qualquer aviso prévio, vou entrando na sala 2.

François Andes: A Travessia do Desastre são as palavras do delicado adesivo na porta de vidro transparente que me recebe.

Ao revés da delicadeza do convite, deparo-me, no entanto, com manequins grotescos, formas bestiais travestidas serenamente de humanos. Esforço-me para ler algumas das frases bordadas em vermelho em suas roupas. Tenho medo (e já certeza) que essas criaturas habitarão meus sonhos.

Algo me parece estranhamente familiar: Bosch? Dürer? Passeio pelos minuciosos desenhos suspensos como quem atravessa uma fronteira entre mundos. Mas logo percebo que não se tratam de dois mundos distintos, exóticos e estranhos um ao outro — separados, quiçá, por distâncias geográficas ou temporais intransponíveis. Não: são mundos que coexistem em sua estranheza. O lá e o cá, aqui, ao mesmo tempo diante dos meus olhos. Queria poder tocá-los, habitá-los. Percorro as distâncias dos enormes painéis tal qual a mão do artista percorreu minuciosamente, a cada traço, o apocalipse que se dispôs a relatar. Um embate tão simultâneo àquele que eu mesma, há poucos minutos, travava com os meus filósofos.

Então é isso, senti. É essa a alegria que a alma sente quando estamos diante da chispa de outra alma humana. Aquele encontro que é de fato um reencontro, como descreveu Plotino, quando disse que “A alma reconhece uma afinidade consigo mesma.”

Vi ali uma natureza tão desnuda na fluidez líquida de suas tintas que pensei que aqueles desenhos só poderiam ter sido feitos por uma mulher. Ou talvez eu tenha ME visto, tão desnuda e líquida na fluidez dos meus próprios pensamentos que pensei que só poderiam estar eles ali, materializados. Mas não era a beleza Hegeliana da manifestação sensível da ideia, na plenitude da Gehalt, que me confrontava, e sim a brutalidade do sublime que me esmagava suave e docemente.

Não estou sozinha e, ao mesmo tempo, estamos todos, pensei.

Ainda não tinha me atrevido a percorrer a segunda parte da exposição quando decidi ler, por precaução, o texto do curador, que me perguntava: “quais paisagens podem ainda ser contempladas por sociedades humanas que, após organizar diversos genocídios, encerram o século XX gerando um ecocídio de consequências desastrosas?”

A pergunta, no entanto, como nos propôs Rancière em sua Partilha do Sensível, era também, tal qual aquela tarde quente e abafada, prenúncio tempestuoso. Não podemos respondê-la, podemos apenas contemplá-la, partilhar de seu “logos idêntico ao pathos“. Ao contrário do que desejavam os iluministas, dessa vez, a razão não nos salvará, pelo contrário, foi justamente ela que nos trouxe até aqui.

É essa travessia do “de onde viemos/para onde vamos” que artista e curador aqui nos convidam a percorrer, sem promessa de chegada na outra margem. Entre obras antiquíssimas atravessadas e ativadas por reflexões tão atuais, nos vemos todos submersos, carregados lentamente por essa correnteza irrefreável de uma barragem que não pode mais conter nossas pulsões de morte e que agora flui, entre os territórios selvagens e os espaços civilizados, por nós e apesar de nós.

 *  *  *

Ainda sob o impacto da exposição, entrei em contato com o próprio François Andes e com o Luiz Gustavo Carvalho, curador da exposição, que gentilmente me concederam a honra desta breve entrevista que aqui compartilho com vocês:

Você vê alguma relação entre o seu trabalho e a obra de Hieronymus Bosch?

François Andes: Eu nasci e vivo na região dos Flandres franceses. Minha família tem a sua origem em Saint Niklas, ao lado da Antuérpia. Eu fiz meus estudos em Bruxelas. Assim, a pintura flamenga, os primitivos flamengos fazem parte desde sempre da minha história. Hieronymus Bosch é um pintor que meu pai me permitiu descobrir quando tinha uns 10 anos. A sua obra foi e é uma grande influência para mim.

Você fez uma residência artística no Vietnam. Em que ela afetou sua prática ou sua pesquisa artística?

Como francês, os períodos de residência me confrontaram com uma história comum e com os cem anos de colonização francesa nesta parte do globo. Este passado colonial tornou-se um traço indelével presente nas minhas pesquisas, desde então.

Como surgiu a ideia de integrar as peças do acervo do museu na exposição Ásia?

Confrontar meu trabalho com obras da Coleção Asiática do Museu Oscar Niemeyer, a mais extensa coleção de arte asiática da América Latina, foi uma proposta do curador Luiz Gustavo Carvalho. Ele me enviou uma seleção de obras, entre as quais eu selecionei cerca de vinte para construir um diálogo com o meu trabalho. Esta escolha foi realizada em função da temática e aspectos que vínhamos desenvolvendo neste diálogo artístico-curatorial desde 2016 para a exposição A Travessia do Desastre.

Luiz Gustavo Carvalho: Quando surgiu a possibilidade de apresentar pela primeira vez no Brasil esta exposição, que tece, de maneira subjetiva, analogias a partir de mitologias de diferentes partes do mundo, eu sabia que o Museu Oscar Niemeyer havia recebido uma importante coleção de arte asiática, doada pelo colecionador e diplomata Fausto Godoy. Integrar parte da coleção que passava a compor o acervo permanente do MON no projeto expositivo que eu desenvolvia com o François pareceu-me imediatamente evidente. Trata-se de uma possibilidade de revisitar a coleção permanente de um museu a partir de um novo olhar e de perceber como obras de diferentes culturas e épocas podem influenciar um olhar contemporâneo. 

As peças em exibição no MON já existiam ou foram todas concebidas para esta exposição?

François Andes: A exposição apresenta uma série de obras criadas em diferentes períodos de residência na Ásia – Vietnã, Coreia do Sul e Camboja, e também no Brasil, em períodos de residência artística no Rio de Janeiro e em Salvador. Em seguida, eu realizei algumas obras diretamente em diálogo com a seleção de obras da Coleção Asiática do Museu Oscar Niemeyer, que vêm enriquecer a exposição. Finalmente, houve uma proposta curatorial para realizar intervenções artísticas in situ, o que resultou na intervenção mural realizada a partir de quatro paisagens chinesas e também na pintura mural realizada a partir de esculturas chinesas da dinastia Wei.

Como você percebe o atual estado do Brasil na participação dessa construção do fim do mundo?

Eu trabalho de maneira regular no Brasil desde 2015. Desde então, tive a oportunidade de participar de residências artísticas com artistas brasileiros e com pesquisadores, o que me permitiu conhecer um pouco da arte, da cultura e da história deste país. Alguns encontros foram marcantes, como o encontro com a obra de Arthur Bispo do Rosário, durante uma residência no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (Rio de Janeiro), ou a oportunidade de conhecer e pesquisar a obra de Pierre Verger, na Fundação Pierre Verger, em Salvador (Bahia).

Desde 2019, eu também li e vi nascer algo distinto – uma acentuação e uma proteção de um sofrimento, de uma histeria que pensa na diferença como um mundo subterrâneo povoado por reptilianos, querendo fuzilamentos, opressão de tribos, várias formas de discriminação, desmatamento, rompimento de diques poluindo vergonhosamente este país.

Como você definiria a sua visão do apocalipse?

A revelação.


Serviço

Realizada pelo Museu Oscar Niemeyer (MON) e apresentada pela primeira vez no Brasil, a exposição A Travessia do Desastre foi concebida durante os períodos de residência artística de François Andes e do curador Luiz Gustavo Carvalho, realizada no Brasil, Vietnã, Camboja e Coreia do Sul, entre 2016 e 2019.

Mas CORRA que a exposição está em cartaz na sala 2 do Museu Oscar Niemeyer (MON) só até o dia 26 de setembro!

Link para o folder digital dessa exposição aqui.

Todas as imagens que ilustram esse texto fazem parte da exposição A Travessia do Desastre e foram cedidas pelo artista e pelo curador.

Quando você estiver lá, não esqueça de me contar o que achou e me mandar um alô no Instagram do @ocorpodaimagem.

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