A cura

O que se cura na arte, afinal?

Ontem, no banho, meu filho de cinco anos de idade me perguntou, olhando para os seus dedos murchos debaixo do chuveiro: “mamãe, como a gente sente as coisas?”

Meu primeiro pensamento foi recorrer a explicações científicas sobre a transmissão de impulsos elétricos dos nervos subcutâneos em direção ao cérebro. Mas me detive, devolvendo-lhe a pergunta: “puxa vida, como você acha que a gente sente as coisas?”

Travamos então uma ótima sequência de hipóteses acerca da localização exata do sentir. Quando lhe perguntei, por exemplo, como a gente pode lembrar da sensação de pisar com os pés na areia quando entramos no mar, mesmo sem estar lá, ele fechou os olhinhos como quem se transporta para o oceano e disse: “eu consigo sentir”. Afinal, sentimos mesmo na pele ou na memória?

E na arte, sentimos com os olhos de hoje ou de ontem? Ou os dois? Como se organizam essas armadilhas?

Obra Incrível como um distúrbio afeta a credibilidade (2021), de Rogério Ghomes.

Tenho estudado já há alguns anos as formas como os artistas articulam esse território no sentir na “obra”, traçando possíveis caminhos e pontos de contato com o receptor. Como fazer com que nós, que a recebemos, deixemos o espaço expositivo com os dedos murchos? Como se dá a trajetória desse afeto, nessa arapuca que o artista nos prepara?

Mas apesar de ter conhecido e estudado diversos artistas ao longo dos últimos anos, sinto ter deixado de lado um certo avesso, uma figura que pode nos dar outras pistas e, inclusive, anteceder os processos artísticos: o curador.

Tradicionalmente entende-se o trabalho da curadoria como aquela que faz uma seleção de peças a serem exibidas em uma mostra, ou mesmo a expografia, que vai determinar a altura dos quadros, a distância entre eles, etc. Mas esse é muitas vezes apenas o fim de um processo que, na verdade, começa muito antes.

Se olharmos para a etimologia, encontraremos que cūra, em latim, significa primordialmente “cuidado”, “diligência” e, por extensão de sentido, “direção, administração”. No senso comum, poderíamos pensar  a cura como um processo terapêutico, espiritual até, através de um mergulho profundo em si, ou no próprio subconsciente.

Mas o que se cura na arte, afinal?

Para designar “cura”, os romanos também diziam sanatio.  A ideia de saneamento em uma cidade, por exemplo, designa condições básicas de habitação. Um curador seria, então, também, e talvez antes de tudo, o responsável por constituir o saneamento de um espaço, por torná-lo “habitável” para aqueles que o atravessarem (seja esse o interior do próprio espaço expositivo ou um espaço ampliado de crítica social). Assim, o curador é responsável pelo cuidado e administração não só das obras, mas  também dos caminhos que nos colocam em contato com ela.

Certamente a curadoria de uma exposição pode ser feita também pelos artistas, ou em parceria com eles. Esta é, aliás, minha combinação preferida, sobretudo quando abandonamos nossos lugares “de fala”, como pesquisadores, curadores, e críticos, e estabelecemos uma relação horizontal nessas relações, nos colocando em modo “de escuta”, nos conectando com os processos criativos (por vezes em tal profundidade que nos tornamos também parte deles).

Sem Título (2017/18), Hugo Mendes.

Porém, esse processo de cura na arte, ao menos naquela que se dispõe a ser exibida ao público, não pode se dar exclusivamente no corpo do artista ou do curador. Há que se buscar nela um gancho, alguma forma de aderir ou se conectar com o outro, algo que possa “tocar” o receptor, ainda que essa “cura” por vezes se dê através da abertura de feridas muito profundas.

Talvez pela minha formação como arquiteta, ou como mãe, precisei desenvolver um olhar “saneador” sobre os espaços (de qualquer tamanho ou espécie: de um cômodo à uma cidade). Tenho olhos de cuidado. Quais os problemas daquele lugar? Como melhorar fluxos entre carros e pessoas, como garantir que afluentes e efluentes não sejam contaminados com a nossa permanência, como estabelecer um equilíbrio próspero e duradouro entre civilização e natureza? Como proteger e deixar livre?

Nas relações, nas cidades ou na arte, certamente se falarmos dos problemas, talvez a pergunta mais difícil (e urgente) hoje seja: como interromper o fluxo incessante das redes? Como propor algo que nos detenha por tempo suficiente para que verdadeiramente possamos nos conectar com o outro? Como criar algo que perdure no tempo, no espaço, no corpo? 

(“mamãe, como a gente sente as coisas?”)

Nos museus, esse “problema de conexão” tem se tornado cada vez mais evidente, à medida que as pessoas o percebem como um espaço cada vez mais transitório, de entretenimento, onde cada exposição se torna um espaço instagramável, um novo fundo para selfies

Obra de Fernando Canalli, integrante da mostra Afinidades, 2021.

Um museu, sobretudo um museu público, não é feito apenas de seu espaço físico e de exposições temporárias ou permanentes, mas de um acervo que precisa não apenas ser mantido, o que inclui trabalhos de constante pesquisa e restauro, mas também estar disponível à população. Há que se pensar nesse fluxo, nesse cuidado.

É o exemplo da recém inaugurada exposição intitulada Afinidades, no Museu Oscar Niemeyer. Diante de uma sala vazia e um acervo abarrotado de obras, muitas ainda desconhecidas do público, em um cenário ainda pandêmico em que os encontros deixaram de ser possíveis, como nos curar?

PM-Panda, de Nelson Leirner.

Marc Potier e Juliana Vosnika foram generosos e sobretudo cuidadosos na escolha dos 20 artistas que compõem a mostra Afinidades, cujas imagens ilustram esse texto. Cada um deles foi convocado, individualmente,  a vasculhar os arquivos de obras no acervo e escolher, entre o novo e o velho acervo, duas obras para propor, entre elas e a partir delas alguma forma de conexão que conduzisse a uma terceira obra, de autoria do próprio artista.

A história poderia terminar aí. Cada artista teria seu quadrado (ou triângulo amoroso) constituído entre essas três combinações, fim, basta abrir a exposição e chamar o público.

Mas não, tal qual crianças teimosas que não param quietas e insistem em se despentear e se sujar, mesmo depois de vestir o uniforme e escovar os dentes, essas obras, no espaço expositivo, criaram outras afinidades ou mesmo disputas entre os territórios que ocupam. Há um embate, um confronto, um diálogo, tanto intencional, entre as peças que cada artista escolheu e sua própria produção, como acidental, entre as proposições de um e outro e o espaço como um todo.

O trabalho dos curadores estendeu-se então a mediar esses conflitos. Deveriam pacificá-los, ou intensificá-los ainda mais? Deveriam ordená-los por semelhanças ou contrastes?

São essas as perguntas que eu vos deixo, e também o convite para que visitem essa mostra: detenham-se diante de cada obra, caminhem lentamente para trás e ampliem esse instante para as outras ao redor, com as quais o artista buscou dialogar. Quais as conexões você percebe entre elas? Dê mais um passinho para trás, e depois mais outro e outro: como elas se conectam ou se interrompem no fluxo do espaço como um todo. E por fim: saia: do que se lembra? Quais as marcas que essa imersão nessa experiência deixou nos dedos das suas mãos? Quais as marcas você deixou nesse espaço?

Depois me conte.


Para ir além

Exposição Afinidades

A partir de 5 de novembro, na Sala 7

Museu Oscar Niemeyer

www.museuoscarniemeyer.org.br

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