No fone, War on Drugs e o sorriso sem dentes de Genesis Owuzu

Passeio ao açougue e lavação de louça também ajudam a ouvir os lançamentos

Dia chuvoso, água, esponja, detergente, louça acumulada do dia anterior. Não gosto de deixar a louça de um dia para o outro, mas a cisterna do prédio foi limpa ontem e a síndica disse para deixar as torneiras desligadas até de manhã. Para amenizar a tarefa, estou ouvindo o último do Sons of Kemet. Não dei muita bola para o anterior, mas esse dá pra ouvir do começo ao fim. Sopros de alegria, pilha de pratos, água fria, percebo que tenho que comprar mais esponja, essa está no mico. Terminando aqui, vou no mercado e já compro carne para fazer hambúrguer. 

Meu amigo Luis Pellanda é escritor, e dos bons. Hoje em dia, para se manter no ofício de escritor é praticamente obrigatório o exercício de um outro ofício: o de instrutor de oficinas de escrita. Outro dia, em uma conversa online sobre o assunto, ele me revelou:

– Fones de ouvido são um tema comum nos textos de oficina, hoje em dia, sabia? Já escreveram sobre eles várias vezes. Muitas vezes eles são descritos como “amigos” que isolam o autor de pessoas ou situações odiáveis no trabalho ou na família.

Lembro da conversa enquanto ouço uma música nova do War on Drugs, e me dirijo a um dos lugares mais odiosos que eu conheço: A fila do açougue. Ali não há amor, odiamos a demora de quem está sendo atendido, odiamos o açougueiro que se alonga demais para preparar todos os pedidos, menos o seu. Ele, por sua vez passa o dia atendendo pessoas odiosas que pensam que entendem mais de cortes bovinos do que ele, 12 anos cortando carnes. Por sorte, só há duas pessoas na minha frente, mas são tipos insuportáveis.

Enquanto a senhora que está sendo atendida faz mil perguntas e solta risadinhas antes de tomar uma decisão, St. Vincent faz o que quer com aquela guitarra assinada que custa 3 mil dólares na Guitar Center, deve sair uns 20 mil por aqui, impossível. Ela tem uma de cada cor, de graça. 

O senhor puxa a máscara para falar com o açougueiro. Não ouço o que ele está falando, mas acompanhando seu gestual deduzo que seja algo como “não vou levar essa, me mostra aquela picanha”. Dou uma olhada no preço do quilo da picanha premium, 140 reais. Em outra época, Jards Macalé cantaria ironicamente o samba de Geraldo Pereira que diz “o ministério da economia parece que vai resolver”, mas agora sacoleja ritmos cubanos com João Donato, seu ídolo da juventude.

Chega minha vez, eu tiro um dos fones para fazer o pedido:

– Você tem aí uma peça de fraldinha?

– Opa, acabei de limpar uma. O açougueiro está estranhamente solícito, e antes de eu pedir, me mostra um belo pedaço de fraldinha, põe na balança, um quilo e seiscentos.

– Você pode moer essa peça para mim? Mas eu queria que você tirasse metade dessa gordura, e passa duas vezes, por favor.

– Hambúrguer? Pra hambúrguer é melhor passar uma vez só.

– Pô, eu sempre passo duas, mas se você tá dizendo… 

Enquanto espero o açougueiro preparar a carne, Genesis Owusu sorri sem nenhum dente no meu ouvido esquerdo. Eu tenho certeza de que o açougueiro vai me cobrar o peso da gordura que eu pedi para ele tirar antes de moer, mas não é o que acontece. Ele pesa novamente e isso me faz economizar uns tostões. Talvez eu precise rever meus ódios. Agradeço, recoloco o fone no ouvido direito e sigo para o corredor de produtos de limpeza.

Sons of Kemet – Black to The Future

Liderado pelo celebrado Saxofonista, clarinetista e compositor Shabaka Hutchings, o Sons of Kemet é um coletivo londrino que combina jazz, ritmos africanos e caribenhos com uma sonoridade única e discursos altamente politizados. 

St Vincent – Daddy’s Home

Em seu disco novo, Annie Clark fala de seu relacionamento com o pai ex-presidiário. No estúdio, ela sabe tudo, e a produção do álbum ficou mais uma vez a cargo de Jack Antonoff. Algo nos arranjos e a produção “setentista moderna” puxou um pouco a música para trás, e o resultado não está entre os seus melhores. Mas tem bons momentos, como The Melting of The Sun. 

The War on Drugs – I Don’t live Here Anymore

A banda da Filadélfia liderada por Adam Granduciel escreve mais um capítulo em seu admirável esforço de reviver e recriar, à sua própria maneira, os timbres e atmosferas oitentistas de seus heróis, como Bruce Springsteen, Tom Petty e Bob Dylan. Alguns poderão dizer que é “mais do mesmo”, mas quando “o mesmo” é bom, qual o problema?

Jards Macalé & João Donato – A Síntese do Lance

Os dois veteranos da Bossa e da MPB se reúnem pela primeira vez, Donato com 87 e Macalé com 78, nesta parceria idealizada e lançada recentemente pela gravadora Rocinante, de Araras/RJ.

Genesis Owusu – Smile With No Teeth

Disco de estréia do cantor e compositor Ganês-Australiano. Difícil de categorizar, ele mostra uma interessante mistura de Funk, Rap e Rock alternativo.

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