Um manifesto por mais jantinhas e menos hambúrgueres

Pensamos fazer escolhas orientadas, mas elas só reproduzem o que nos manda a indústria que quer exclusividade de consumo sobre seus produtos

A gastronomia do Brasil nasceu na roça. É no período dos assentamentos da mineração que nos tornamos brasileiros. O invasor já não ia e voltava tanto da Europa, se tornou ocioso, se misturou com os índios e as primeiras formas da gastronomia tradicional brasileira passaram a emergir deste cenário. A comida do Brasil nasceu no interior e pautou mesas por anos a fio. Infelizmente, no entanto, na medida em que os centros urbanos cresceram, torcemos o nariz para a comida de nossos avós. Burrice das maiores.

Mas há focos de resistência. Em Brasília, eu conheci a “jantinha”. Terça-feira, no Setor Bancário Sul, samba rolando, uma profusão de parlamentares e plebe, misturados ao som de risadas e tilintar de copos e garrafas de cerveja, calor do cão, precisei recarregar o meu copo vazio no bar. Pego o cardápio, olho os petiscos, vejo os espetinhos, que já haviam me fisgado pelo cheiro há tempos. Logo abaixo, a opção de “jantinha”. No pagode, para boêmio algum botar defeito, você pode pedir seu espetinho de churrasco, acompanhado de macaxeira (aipim) e feijão tropeiro: uma combinação maravilhosa, que segura qualquer ressaca. Tava delicioso.

No dia seguinte, na casa dos meus anfitriões, lhes dizia que por conta do mar de hambúrgueres, quiçá pizzas meia boca e cada vez menos podrões, a nossa gastronomia curitibana de tarde da noite, não tinha lá essas criatividades. Vítimas de uma pasteurização de sabores, os notívagos curitibanos, além dos costelões (que talvez não se sustentem mais por tanto tempo), não têm tanta opção assim para aplacar o mal-estar vindouro do dia seguinte. Porém, aquela mini celebração de churrasco à mineira, que eu havia comido na noite anterior, tinha me arrebatado não só o coração como a ressaca.

Acredito que Curitiba só não tenha mais hamburguerias que farmácias e ruas re-asfaltadas sem necessidade. Na homogeneização generalizada em que vivemos, o lanche americanizado, depois de umas tantas horas da noite, é a opção hegemônica. Aparentemente, vitória de uma indústria que nos coloniza o paladar há anos e as costas que demos para a alimentação interiorana. O junk food, muitas vezes condensa os exageros de sódio, gordura e açúcar que nos tem dependente dos produtos industrializados.

Não satisfeita em ter trocado radicalmente a nossa alimentação com relação à de nossos pais, em especial em momentos hedonistas, a indústria progride para que consumamos mais e mais, paulatinamente ao crescimento de seus dividendos. A última maximização da lucratividade é em torno dos laticínios. Graças aos aumentos recordes, as empresas de alimentos ultraprocessados criaram “soluções”, muito mais baratas para o consumidor, chamadas de compostos lácteos. Algumas vezes, esses produtos, milagrosos nos balancetes, sequer tem a presença de leite em suas formas.

O soro de leite, antes descartado pela indústria, virou matéria-prima substitutiva. Alguns compostos que têm a pretensão de se passarem por queijo, e estão encontrando bastante vazão no mercado, só possuem o aroma do laticínio. Um desses substitutos – de mussarela – ganhou a mídia essa semana por conta da sua fórmula: água, gordura vegetal, amido modificado, caseína, sal estabilizantes citrato de sódio e fosfato de sódio, regulador de acidez ácido cítrico, conservador sorbato de potássio, corante betacaroteno e aroma idêntico ao natural de mussarela. É alguma coisa, só não queijo.

O consumidor da rua está ainda mais desprotegido. Se comprado no mercado, há a chance dos ingredientes usados para a composição dessas fórmulas químicas estarem escritos em letras medíocres, semi escondidas. Já nossos consumidores do balcão/banquinha, não terão a mesma chance quando saborearem aquela qualquer coisa descrita como Cheddar que acompanha o seu sanduíche da madrugada – ou da lanchonete do bairro.

Além disso, essa pobreza gastronômica contribui negativamente tanto para a escassez de produtos nas produções agrárias, quanto sobre a celebrada biodiversidade brasileira. Já que a monotonia da farinha de trigo, carne vermelha, gordura animal e aditivos químicos serve de norma, para que gastar tempo e terra produzindo outra coisa? É um fato que diversos alimentos tradicionais, como frutas, grãos, sementes, raças de animais, queijos e muitos outros estão desaparecendo aos milhares no mundo todo.

Parece exagero de um comilão, mas não é. Não há dúvida da capacidade destrutiva do capitalismo que nos rege. Além da deterioração da criatividade alimentar há um grande cerceamento de direitos, na medida em que o nosso paladar é capturado pelos ultraprocessados, seus lobbies, propaganda e farta distribuição. Pensamos fazer escolhas orientadas, mas elas só reproduzem o que nos manda a indústria que quer exclusividade de consumo sobre seus produtos.

Voltando um pouco no tempo, ao final dos anos 90, no carnaval de Ouro Preto, das poucas lembranças que ainda tenho, uma delas diz respeito à fila que se formava na frente de uma portinha, na madrugada, para comer macarrão com carne moída, feita por uma cozinheira local. Era a solução do fim de noite. Esses dias, descobri que a mesma tradição ocorre em Belo Horizonte há muitas décadas. Entre os tradicionais clientes da madrugada estavam músicos do Sepultura e do Skank, só para citar um exemplo. Talvez seja saudosismo? Talvez, mas que a jantinha de Brasília dá de mil a zero em qualquer hambúrguer com “cheddar”, isso dá!

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