Os bonés e a vitória cultural do MST

O MST resistiu bravamente ao apagamento histórico a que esteve sujeito durante os vinte primeiros anos de sua existência

Há uma diferença latente entre o que é um objeto e o que ele representa. A diferença entre símbolo e signo, já foi tema de explicações muito complexas. Do cachimbo de Freud a lógica Hegeliana, há vezes em que um simples objeto, como um boné, transcende em muito a condição de proteger do sol. E é falando sobre esse clássico signo do trabalhador rural que começaremos esta derradeira coluna sobre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Este movimento de resistência, e identidade legitimamente brasileira, que no decorrer de quase 40 anos, vem alimentando a justiça, a emancipação nacional, a nossa saúde, e, agora, revoluciona o país culturalmente.

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“O símbolo em geral é uma existência exterior imediatamente presente ou dada para a intuição, a qual, porém, não deve ser tomada do modo como se apresenta de imediato, por causa dela mesma, mas deve ser compreendida num sentido mais amplo e mais universal. Por isso, devem ser distinguidas a seguir duas coisas no símbolo: primeiro o significado e depois a expressão do significado”, nos ensina Hegel, filósofo alemão do século XVIII. O boné do MST mudou muito pouco nesses quase quarenta anos, além de um objeto inconfundível, seu design, insígnias e sua cor rubra trazem, hoje em dia, uma identificação marcada na nossa cultura, como um símbolo de filiação a um projeto de Brasil.

Recentemente houve um burburinho que tomou as redes: à medida em que celebridades e anônimos, que não fazem parte do movimento, começaram a usar o boné, opiniões ficaram divididas pela webesfera. Apesar de alguns serem contra o uso por julgarem ser uma apropriação indevida de um boné tão simbólico, o movimento não vê grandes problemas – ainda que espere comprometimento com a causa por parte dos seus portadores – “nós nos orgulhamos quando vemos pessoas que não são do MST utilizando os nossos símbolos, nossos bonés, camisetas e bandeiras. Sabemos que utilizar esses símbolos é assumir um compromisso na sociedade. É dizer ‘ocupa tudo’! É dizer, pedagogicamente, que as conquistas só são arrancadas através da luta e da organização”, declarou Kelli Mafort, da direção nacional do MST, em recente entrevista.

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O fato é que a polêmica denota a permeabilidade do movimento no imaginário popular das cidades. Isso é de fato inédito. Pela primeira vez um movimento reivindicatório do campo chega a povoar imaginários dentro e fora das cabeças citadinas. Aliás, signos estão aí para alcançarem status de símbolo, e o MST vem cumprindo bem com o trabalho de promotor cultural, ratificando a sua posição na subversão ao capitalismo tupiniquim. Com a ajuda de Eduardo Moreira, ex-banqueiro, agora benfeitor, o movimento fez uma captação inédita de valores através de ferramentas utilizadas pela sua nêmesis, o agronegócio. A agroecologia entrou na Bolsa de Valores, desagradando poderosos, como sempre.

Julho de 2021 foi a data marco para que grandes e pequenos investidores, pudessem passar a investir diretamente na produção de alimentos orgânicos por famílias trabalhadoras rurais cooperativadas. No entanto, não é a primeira vez que o MST vai à bolsa. Em maio de 2020, houve uma oferta restrita, voltada apenas para investidores qualificados – que possuem patrimônio investido de um milhão de reais ou mais. Através da emissão de Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), modalidade de títulos de renda fixa, que existe como ferramenta para a captação e financiamento da produção do campo, o MST emitiu R$1,5 milhões para sete de suas cooperativas (três sendo aqui do Paraná) financiarem suas produções agroecológicas.

A novidade desta vez é o fato de que pequenos investidores também podem entrar no financiamento, que tem o retorno pré-fixado de 5,5% ao ano e será pago com o lucro da produção das sete cooperativas envolvidas na operação. Qualquer pessoa poderá comprar os títulos, a partir de R$100,00 cada e prazo de cinco anos para receber, ou seja, o investidor só “saca” os rendimentos após esses período e eles não são tributáveis pelo imposto de renda. Um verdadeiro marco no sistema nacional, quiçá internacional, não pelo produto financeiro em si, mas pela possibilidade do cidadão brasileiro poder escolher um produto que gere valor para muito além dos retornos financeiros puros e simples.

É claro que a iniciativa, que desbanca a hegemonia dos poderosos donos de bancos em escolher que roça se quer financiar, perturbou o status quo. “A operação do MST foi um grande sacolejo. Gerou um monte de críticas. Tentaram boicotar. Por que essa preocupação? Porque ela foi um golpe frontal na estrutura do sistema financeiro brasileiro, que, na minha opinião, é quem mais corrói e corrompe a democracia e economia brasileira. É o maior câncer do Brasil. Quem mais alimenta desigualdade e privilégios é o sistema financeiro”, conclui Eduardo Moreira, em entrevista para o Intercept, na ocasião.

Aproveitando o gancho do economista, é ponto pacífico dizer que a união hegemônica, que atende tão somente aos bolsos de poucos, entre agronegócio e grande capital é tão antiga quanto o próprio Brasil. Bancos, que tomam dinheiro da população, investem no agronegócio, priorizando seus lucros, produzindo não só desequilíbrios naturais, mas também favorecendo desigualdades. “É como se você tivesse num condomínio com 100 apartamentos, e um morador tivesse ganhado uma procuração de 50 apartamentos para votar por eles na reunião. A gente dá uma procuração aos bancos para ‘votarem’ no país que eles querem”, sacramenta o economista.

Fomos testemunhas nos últimos anos do horror que um país voltado para a produção de commodities pode causar. A inflação puxada pela alta dos alimentos colocou dezenas de brasileiros em quadros vergonhosos de fome, descontrolou balancetes contábeis e jogou o setor da alimentação numa situação de Deus nos acuda, na medida em que caixas mensais estão cada vez mais difíceis de fechar. Novamente, recebendo as rédeas do financiamento da produção, o MST propõe a solução através de uma mudança no paradigma cultural brasileiro, afastando as ideias simplistas de que a organização camponesa carece de repertório, tecnologia e respostas para os problemas do nosso país.

Aliás, educação e repertório, nunca foi deficiência para os assentados ou mesmo acampados do movimento e os resultados desta política, dentro de uma nova maneira de se pensar o Brasil, já estão sendo colhidos. “Faz muitos anos que o movimento tem um lema: todo e toda sem terra estudando. Para nós é muito importante elevar o nível de escolaridade, fazendo formação técnica e política de toda a nossa base. Porém, utilizando-se de outra concepção de educação: uma que seja mais humanizadora”, me conta Priscila Facina Monnerat, educadora popular da agroecologia e integrante do coletivo de direção estadual do MST-PR.

O movimento há tempos encara como um dos seus pilares ser força transformadora da sociedade em que vivemos e esta tendência vai continuar, “hoje em dia, com um território mais amplo conquistado, outros objetivos vão ganhando mais força dentro do movimento, como por exemplo, a relação campo-cidade, que avançou muito no último período, a produção de alimentos saudáveis em quantidade e qualidade e a entrada muito forte do movimento na discussão ambiental, com o lançamento do plano nacional Plantar Árvores e Produzir Alimentos Saudáveis. Crescemos também na questão das relações, temos setores e coletivos de gênero, da juventude, lgbtqia+, ampliando as discussões dentro e fora do movimento”, me conta Priscila.

Porém, as ambições não param por aí, “ainda é necessário conseguir terras pois temos muitas famílias acampadas. Identificamos também o potencial de trazer muitas famílias de volta para o campo, trazendo mais pessoas para uma vida digna no interior. Já nas terras conquistadas, produzir em quantidade e qualidade uma grande diversidade de alimentos saudáveis e também cuidar dos nossos bens comuns como a água, o solo, as sementes, fazendo uma agricultura que não polui, que não degrada e que gera saúde para as pessoas, ao invés de doença”, conclui a educadora agroecológica.

Voltando a Hegel, para o filósofo, a realidade é um processo histórico moldado pelas ideias que se manifestam de acordo com o período em que vivemos, caminhando sempre para mais razão e liberdade. No caso concreto brasileiro, temos pela primeira vez uma rivalidade de formas de produção e cultura que organizam em torno de si valores antagônicos. De um lado, um patriotismo e nacionalidades expressos pela produção com fins de alimentar, criar, acolher, equalizar e educar, e do outro um modelo predatório, egoísta, escravista, e em desacordo com o bem comum. A decisão que nos leve a mais razão e liberdade parece prescindir de explicações filosóficas de velhos alemães já falecidos.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, em suas quase quatro décadas de existência resistiu bravamente ao apagamento histórico a que esteve sujeito durante os vinte primeiros anos de sua existência. Mesmo tendo sofrido baixas irreparáveis e injustiças atrozes, a partir da sua terceira década de existência, se tornou um movimento reivindicatório robusto, autêntico e conectado a um Brasil de necessidades mil, mas que ainda muito pouco se conhece e reconhece. Agora, já com quase quarenta anos, esta revolução que nasceu aqui no Paraná, se consolida como uma alternativa emancipatória de anos e mais anos de um modelo exploratório de corpos e terra, que tanto fez os brasileiros sofrerem. Não é uma escolha difícil, como dizem alguns que desejam que as coisas permaneçam como estão, nunca foi.

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