A terra pode saciar nossa fome de justiça

Se o Brasil tem uma inegável vocação agrária, ela, não obstante, nunca foi brasileira, salvo quando a terra ainda pertencia aos povos originários

Slavoj Zizek, filósofo europeu, tem uma visão muito interessante sobre a apropriação do colonialismo como uma forma de emancipação. Em um de seus livros, “Problemas no Paraíso”, usando como exemplo a dominação britânica, ele diz que uma pretensa volta ao que seria a Índia antes da colonização, não seria de fato encontrar-se com a liberdade. Ele sugere outra estratégia: se um indiano consegue exprimir o que é a Índia em inglês, essa por si só, é uma emancipação latente do colonialismo. É a apropriação da língua imposta sobre a população dominada, usada como arma narrativa contra o projeto colonizador, que, de acordo com o autor, denotaria a superação aos grilhões colonialistas.

Sob sol tropical e também dimensões continentais, acredito que tenhamos um caso destes aqui mesmo, neste bem sucedido projeto colonial português, o Brasil. Na última coluna contei um pouco da história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra nas suas primeiras décadas de vida e como, pela primeira vez, um movimento reivindicatório consegue sobreviver às incessantes investidas estatais para que ele chegasse ao fim. Na coluna desta semana, vamos olhar para os momentos resolutos que tornam o MST tão importante para a história nacional e para os próprios brasileiros, em adição ao que isso tem a ver com a proposição de Zizek.

O ano é de 2002, Lula se elegeu presidente pela primeira vez e os ânimos andavam altos. Alguns anos antes, depois de marcharem de diversos lugares do Brasil, com uma adesão maciça, inúmeros sem terra vão até Brasília reivindicar punição aos envolvidos na chacina de Eldorado dos Carajás. É nessa época também que há apoio manifesto de diversas personalidades brasileiras ao movimento. Sebastião Salgado e Chico Buarque de Holanda, expoentes de nossas artes, gravam e fotografam para os sem terra, dando maior visibilidade ao movimento que, apesar de alguns avanços, segue marginalizado pela narrativa majoritária. Porém, apesar da intrepidez renovada com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, seu mandato é decepcionante para aqueles que reivindicavam terras para trabalhar. O Presidente esquerdista marca uma continuação das políticas agrárias voltadas ao agronegócio e intensifica o modelo agrário-exportador monocultor de produtos como o soja, cana-de-açúcar, celulose, além, é claro, da pecuária extensiva. De acordo com o movimento, a aquisição de terras por estrangeiros é recorde no mesmo período, e o agronegócio, novamente, se vê impulsionado pelo estado brasileiro para seguir com seu ethos exploratório, predatório e intensificador de desigualdades.

Como se não bastasse o esvaziamento sistemático e continuado pelo recém-chegado governo Lula, o MST sofre outro revés violento já nos primeiros anos do novo milênio. O massacre de Felisburgo, Minas Gerais, em 2004, resultou na morte de cinco homens, vinte pessoas gravemente feridas e duzentas famílias com suas casas, plantações e escolas em cinzas. O grileiro, Adriano Chafik Luedy, adentrou a propriedade na ocasião, ocupada havia dois anos pelo MST, na companhia de mais quinze pistoleiros, atirando a esmo e pondo fogo em tudo que encontravam. Os assassinos acabaram condenados, mas as famílias ainda aguardam a emissão da posse das terras e a reparação dos danos até hoje.

Neste clima de derrota, o começo do milênio apontava para a repetição da história para os trabalhadores do campo brasileiro. Todavia, algumas políticas públicas dos primeiros governos Lula dão novo fôlego à produção do pequeno agricultor. Ações de destaque são criadas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). O primeiro, criado em 2003, tem como finalidade promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar comprando alimentos dos pequenos produtores e destinando-os às pessoas em situação de insegurança alimentar atendidas pela rede socioassistencial. Já o PNAE oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes da educação básica pública, através de um programa de repasses financeiros do Governo Federal.

De um lado, através destas ações governamentais (que entram em cena por conta do notório programa “Fome Zero”), as pequenas propriedades ganham força, porém, os trabalhadores continuariam sendo esmagados pelo modelo focado em exportações, grandes bancos e grupos econômicos que compunham – e compõe até hoje – o agronegócio nacional, fazendo com que a ideia de uma reforma agrária abrangente perdesse ainda mais fôlego. Nesta situação, o MST, já mais organizado, se vê demandado a subir o nível do debate. Não estava em jogo só uma distribuição desigual crescente de terras, o que por si só justificaria o tão esperado remanejamento, mas também havia a necessidade de uma discussão ampla sobre a forma de se produzir alimentos no Brasil.

Já no segundo mandato Lula, em 2007, o MST promove o que seria até então o maior encontro de trabalhadores camponeses da América Latina, seu quinto congresso intitulado: “Reforma Agrária, por Justiça Social e Soberania Popular”. Ampliando o escopo que sai da pura partilha de terra e começa a enxergar a reforma agrária também como “alternativa para as soluções dos gravíssimos problemas sociais do Brasil: a fome, o desemprego, a violência e todo o processo crescente de exclusão econômica e social”, aprimorando seu repertório e acolhendo uma visão mais abrangente das necessidades nacionais.

É no governo Dilma, em 2014, todavia, que o MST torna política oficial a sua missão de se diferenciar radicalmente do modelo agroexportador que nos assombra desde que os europeus vieram espoliar as terras do novo mundo. “Lutar, Construir, Reforma Agrária Popular”, é o slogan do seu sexto congresso nacional realizado naquele ano, e marca o entendimento do MST de que “a Reforma Agrária não é apenas um problema e uma necessidade dos Sem Terra, do MST ou da Via Campesina. É uma necessidade de toda sociedade brasileira, em especial os 80% da população que vive de seu próprio trabalho e que precisa de um novo modelo de organização da economia, com renda e emprego para todos”, ratificam.

Abraçando a agroecologia, que é o manejo agrícola feito sob uma perspectiva ecológica holística, e agregando saberes tradicionais e populares, oriundos da agricultura familiar camponesa e indígena, sem nunca deixar de brigar pela distribuição igualitária de terras, o movimento passa entender que a sua produção, deve obedecer uma lógica que priorize a produção de alimentos saudáveis para o mercado interno e também se alinhar com um modelo econômico que distribua renda e respeite o meio ambiente, rompendo com o habitus de exploração organizada que perdura desde que o europeu se fixou em território nacional.

É nesse contexto que a marca Armazém do Campo nasce, transformando a justiça agrária em produtos que têm a pretensão de promover a integração entre o campo e a cidade. A empreitada, administrada pelo movimento, tem abrangência nacional. Em Curitiba, seu braço representativo é a marca Produtos da Terra, que tem como carro chefe as Cestas Agroecológicas Campo Cidade. A cesta consiste na entrega de uma variedade de produtos (cerca de 280 itens): alimentos agroecológicos (hortaliças, tubérculos, legumes, frutas, temperos), bebidas alcoólicas, grãos, farinhas, cosméticos naturais, sucos integrais, lácteos, polpas de frutas, conservas, antepastos, doces, geleias, sementes agroecológicas, biscoitos, entre outro. O cliente escolhe a cada semana os itens disponíveis pelo site e os recebe em entregas diárias.

O Produtos da Terra PR também está presente em seis feiras na capital e, além de atender consumidores finais, presta o serviço de logística (armazenamento e distribuição) para as cooperativas filiadas da CCA – Cooperativa Central da Reforma Agrária que são contempladas no PAA e PNAE no abastecimento de escolas e entidades de Curitiba e região metropolitana. Ainda timidamente, atende também a restaurantes e comércios que buscam produtos agroecológicos e da Reforma Agrária. Para completar, a marca participa das ações de solidariedade do MST e seus parceiros, fazendo arrecadação junto aos seus consumidores e a montagem de cestas para doações a famílias em situação de insegurança alimentar.

Se o Brasil tem uma inegável vocação agrária, ela, não obstante, nunca foi brasileira, salvo quando a terra ainda pertencia aos povos originários. O Império Português se instala no Brasil, criando sua identidade ociosa de produção, mas ao mesmo tempo, levando o espólio do sangue e suor dos brasileiros para além mares, sem embargo, ditando o que aqui se produzira de acordo com interesses alhures. Pela primeira vez, o MST, primeiro movimento reivindicatório que sobrevive ao nosso estado fratricida, chega para subverter a regra, produzindo alimentos que saciam tanto a fome de justiça, quanto corpos bem cuidados por seus produtos em consonância com a natureza.

Portanto, voltando ao primeiro parágrafo, se a obrigação do uso do inglês, língua pátria do agora Rei Charles, representou o signo a ser subvertido pelos indianos para a promoção de sua independência e auto afirmação contemporânea, o mesmo pode ser dito do Brasil do agronegócio. Quando o povo decide o que produzir, onde produzir e como produzir, subverte a lógica que nos foi imposta desde os tempos da coroa, até sua atualização vigente, latifúndios monocultores e conglomerados bancários. O MST está nos mostrando que, quando o brasileiro toma a dianteira da produção agrícola, ele afirma o Brasil que quer e precisa, e este país, está em sintonia com a natureza e a necessidade de seus irmãos. Logo, o movimento é fundamental para que trilhemos finalmente o caminho para nossa verdadeira independência. Está na hora de o enxergarmos desta forma: o grande exemplo que é para todo o país.

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