O que dá à ACP o direito de apoiar Bolsonaro? (parte 2)

Presidente da Associação Comercial dá declarações ilógicas dizendo que eleição da esquerda prejudica o Natal

Eu aprendi que se discute tudo menos fé. Fé é uma experiência subjetiva do ser. É basicamente o que nos faz esse bicho meio viajandão que somos. Como é pessoal e intransferível, alguém só pode entender a própria fé, através do seu próprio mundo. Portanto, é inócua uma discussão sobre o assunto, toda e qualquer manifestação de fé deve ser respeitada. No entanto, o que não são subjetivos são dados econômicos e o presidente da Associação Comercial do Paraná (ACP), através das suas últimas declarações, parece estar experienciado uma fé muito particular, quando fala de economia.

Leia mais: O que dá à ACP o direito de apoiar Bolsonaro? (parte 1)

Para um veículo de extrema direita daqui da cidade, em entrevista, Camilo Turmina cravou: “A eleição pode empacar tudo no Natal. Se ganhar a direita, as vendas vão subir como foguete. Se vencer a esquerda, o cenário vai desestabilizar porque vai aumentar a desconfiança”, diz. “Se não houvesse eleição esse ano, o Natal seria bom de qualquer forma. Esse ano as vendas estão ameaçadas pelo resultado das urnas”, completou, expressando seu posicionamento de torcedor bolsonarista típico.

Ao contrário de sua fé absoluta, não há motivos para se acreditar nesta ilógica relação de causa e efeito a que se refere Camilo. O dirigente também se refere, na mesma matéria, a uma queda na inflação que poderia ser atrapalhada caso a esquerda substituísse Bolsonaro. Porém, os dados falam por si. Em se tratando somente da inflação – a maior em vinte e seis anos – fenômeno real e de implicações cruéis, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumula uma alta de 8,73% desde janeiro, ou seja, dez reais no começo do ano, hoje, para comprar qualquer coisa, valem um pouquinho mais do que nove.

Além disso, apesar de nos últimos dois meses o IPCA ter sofrido uma leve baixa, muito pouco mudou para o consumidor ou empresário médio. O cálculo da taxa leva em consideração: alimentação e bebidas, habitação, artigos de residência, vestuário, transportes, saúde e cuidados pessoais, despesas pessoais, educação e comunicação. Destes grupos que compõem o índice, só transportes (3,37%) e comunicação (1,1%) tiveram quedas em seus preços, no último mês, para citar um exemplo. Todos os outros grupos tiveram aumentos – de 0,1% a 1,69% – só em agosto. Portanto, falar em tendência de deflação (ou queda) geral de preços é uma falácia completa.

Não esqueçamos que essa diminuição dos preços está quase exclusivamente relacionada à baixa sofrida pelos preços dos combustíveis, a partir da diminuição da arrecadação de ICMS nos estados. A retenção da rubrica, no entanto, que é um imposto estadual, se provará insustentável já no curto prazo, em 2023. Sendo este o tributo que gera a maior arrecadação dos estados, há de se perguntar de onde virá o dinheiro para aplacar o déficit da canetada “bic”, feita pelo governo federal. A esferográfica pode até ser barata mas o prejuízo sairá caro ao contribuinte, em especial aos mais pobres, que poderão ter verbas cortadas dos serviços de assistência pública, para que se cubra o buraco eleitoreiro de Bolsonaro, em plena campanha de reeleição.

Voltemos à ilógica relação explorada pelos argumentos da ACP. O fim do ano, para o comércio, é o alívio catártico da dificuldade de 12 meses acumulados. É a última corrida, o último esforço, a hora de nivelar as contas, de celebrar a superação e esse é o sentimento que a ACP está sequestrando para fazer valer suas opiniões descoladas da realidade.

Se houvesse qualquer comprometimento da associação para além da sua agenda particular, seria fácil observar que na última eleição da esquerda, com Dilma, em 2014, o comércio varejista aumentou as vendas em dezembro, com relação ao ano anterior em 2,2%, ao passo que, no ano de seu impeachment e posse de Temer, ligado à direita, em 2016, o índice foi de -6,2%. No entanto, eu não tenho a coragem de Camilo de afirmar que uma coisa tem a ver com a outra, porque não tem.

Essa implicação é absurda, tão absurda quanto a fé absoluta em um neoliberalismo xiita e infantil deste governo de fome. Se houvesse qualquer preocupação em predizer o futuro do comércio varejista ao final do ano, teria de se levar em consideração o nível de endividamento da população, seu poder de compra e a oferta de crédito, por exemplo. Ainda que em separado, essas taxas não sejam determinantes, sua comunhão denota no mínimo o quão favorável estará o cenário de compras em dezembro.

Não é novidade para ninguém, porém, que esses índices estão mal das pernas. O nível de endividamento das famílias estava em quase 77,3% em junho, de acordo com a Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) divulgada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Com o poder de compra estraçalhado pela inflação e taxa básica de juros no seu maior patamar em seis anos (13,75%), o fim do ano ficará aquém dos nossos melhores dias, não pelo que poderá vir mas pelo o que estão nos fazendo passar.

Muito longe dos apertos de mão e afagos que o presidente da ACP deve receber de seus pares, o mundo real me joga esses números na cara como tapas e socos. Aqui, nas cadeias produtivas do Brasil, todo dia é um desafio. Lutar contra a falta de pragmatismos daqueles que deveriam nos representar, só soma mais ainda aos golpes. Sofremos do mal real da má gestão deste governo e, infelizmente, entre representantes e representados, não comungamos da mesma fé. Enquanto a esperança religiosa da ACP lhe faz acreditar, sem critérios, em solução mágicas advindas deste time de Brasília, o meu balancete laico, meus darfs e boletos a pagar, não só me mantém com os pés bem presos à areia movediça dos últimos tempos, como me fazem querer que nos livremos dos pastores que ordenham a associação paranaense o quanto antes. Amém!

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