Maestro, um músico sem instrumento

Orquestras não podem ser o instrumento do maestro porque músicos não são objetos

“Vivemos num mundo em que tudo
que é impresso parece idêntico.
Escrever à mão, em vez de digitar num teclado,
despeja o nosso corpo em cada palavra”.
Doug Rice em “A densidade adequada do abandono”.

Tradução: Caetano W. Galindo

Quando li as palavras de Rice pela primeira vez, fiquei obcecada. Marquei o livro, li para todo mundo que pude, desejei mais. Observei que toda atividade humana registra quem nós somos. O corpo sensibiliza tudo o que toca. A luz que toca a retina, o som que toca o ouvido, o ar que toca o nariz e os corpos rolando na língua nos mostram que tudo é tato.

Quando um músico assopra seu instrumento, ele toca. O ar, que enche os pulmões garantindo a vida, tem destino – o som. E, mesmo que o músico toque violino, piano ou bateria e não assopre diretamente, é seu corpo oxigenado, cheio de vida, que pela pele toca.

Aprender a tocar um instrumento musical ou a cantar é, também, aprender a se movimentar. Quando éramos bebês aprendemos a andar e a falar, aos 7 anos aprendemos a escrever, e, depois de um tempo, fazemos tudo isso com fluidez, sem pensar em como devemos nos mexer para realizar. Tocar um instrumento, ou cantar, é semelhante.

Mas cada um de nós tem um andar, um modo de falar, uma caligrafia e um som próprios. Se eu tentar tocar uma flauta, o som vai contar uma história. A história de alguém que não sabe tocar flauta, mas que tem noções musicais e um conhecimento mínimo sobre o mecanismo do instrumento. Flautistas terão outra história em sua produção de som. Uma história de prática, estudo e curiosidade, para dizer o mínimo.

Há muito tempo tenho pensado sobre como a música acontece, especialmente, a música de tradição escrita. Ler notas num papel resultam em movimentos no corpo, e esses movimentos serão distintos em cada um, mesmo que tenham inúmeras semelhanças. Por mais mecânico que possa parecer, tocar é um universo de possibilidades, e são com essas possibilidades que a interpretação musical trabalha.

Interpretação musical é a área de estudo de regentes. Ao lermos uma música construímos possibilidades de como aquelas ideias podem soar. Experimente ler em voz alta a frase: estou cansada e com fome. Releia e tente pensar em um tom de voz que comunique uma sensibilidade sobre o cansaço e a fome – estou cansada e com fome. Intérpretes musicais fazem isso com sons que têm ou não linguagem. O que nos sugere o tom de voz são as articulações, a tonalidade, o timbre e vários outros componentes ali presentes, inclusive as pessoas.

Isabel Teixeira diz que o ator escreve na cena quando coloca o seu jeito de dizer um texto. Eu acho que o músico faz o mesmo. Mas a visão de que tocar um instrumento é uma prática mecânica é limitante.

Muitos afirmam que: “a orquestra é o instrumento do maestro”, eu mesma já disse isso. Mas agora, percebo que essa frase molda um pensamento que pode ser problemático. Uma orquestra é composta por pessoas, entendê-la como um instrumento é uma prática de objetificação. Parte do princípio de que a orquestra cumpre funções mecânicas e o maestro funções intelectuais, como se músicos fossem máquinas. Mas, tudo que escrevi acima nos mostra que não é assim. Tocar não é mecânico, não é neutro e é cheio de características construídas sobre um desejo de expressão.

A neutralidade é um empobrecimento artístico, e toda tentativa de neutralizar um discurso é fracassada. O som musical  sai da intenção de alguém em mover algo. Se um maestro chega à frente de uma orquestra e espera que ela toque de maneira neutra e que suas ideias sejam a única assinatura de interpretação, ele está objetificando dezenas de corpos. Está fechando os ouvidos àquilo que é potencialmente potente nos sujeitos.

Há quem diga que é: “perigosa uma orquestra com personalidade”, porque ela pode influenciar os maestros. Mas eu acho assustadora a soberba de alguém que acha que pode objetificar todos aqueles sujeitos, esperando deles subserviência, como se eles fossem serviçais de um rei. Como se estar ali, sentado na cadeira de uma orquestra, retirasse o direito à opinião, às ideias e à identidade, enquanto um outro que está no centro e em pé fosse o único com direito a tudo isso. 

Orquestras não podem ser o instrumento do maestro porque músicos não são objetos. Regentes à frente da orquestra usam ferramentas como a batuta, o diálogo, o gesto, mas fazemos música com sujeitos, não com instrumentos. A relação hierárquica de que quem executa é inferior àqueles que pensam é muito antiga, mas precisa ser revista, pois tudo o que fazemos passa por aprendizados, é intelectualizado.

Sou violonista e como tal meu instrumento é o violão. Mas, como maestra, ainda não sei dizer se tenho um instrumento. O que sei, é que o contato com as pessoas e com suas possibilidades me despertam ideias. E, quando, pelo diálogo ou pelo gesto, as proponho, ofereço minhas ideias como uma possibilidade porosa, disposta à modificação que o outro sugerir quando aquilo o tocar.

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