Nos bares de Curitiba, éramos felizes e sabíamos

Depois da pandemia, muita gente ficou sem grana para bares e restaurantes

O “ponto de vista” é: você coloca o disco de vinil na vitrola, posiciona a agulha na extremidade da bolacha e a música começa a tocar. Você ouve três, quatro músicas, mas acha que não se emocionou o suficiente em uma delas. Levanta, vai ao aparelho, retorna a agulha em direção à borda do LP, a melodia retoma e, de repente, você leva um susto na medida em que outra canção, completamente inusitada, e não aquela que você escolheu, ocupa o ambiente. Este é o tipo de estranhamento a que estão acometidos alguns empresários do ramo de bares e restaurantes, agora, alguns meses após o fim da pandemia do Covid. Alguma coisa mudou e o mundo não parece mais soar como 2019.

“Eu acredito que foi um impacto da conjuntura econômica, o impacto inflacionário que veio do governo anterior prejudicou muito o poder de compra. Não está sobrando dinheiro no orçamento familiar para a diversão”, explica Eduardo Pereira, diretor da premiada marca de destilados Hambre, de Curitiba. Apesar da aparente retomada, bares e restaurantes têm passado alguns meses difíceis, contrariando a percepção geral do público de que estão todos faturando às mil maravilhas.

“Os números ruins já vieram de fevereiro, março e abril. Até julho tivemos trinta por cento de diminuição nas vendas, aproximadamente. O impacto inflacionário do governo Bolsonaro aumentou muito o valor dos produtos; se um azeite de oliva era R$20, hoje é R$40. Recentemente, no entanto, estamos vendo alguma deflação, o poder de compra vai melhorar um pouco. Talvez isso dê uma ajuda, mas na minha opinião a galera até hoje tem menos dinheiro. No ano passado eu almoçava por R$25, hoje pago R$35. Eu penso bastante nisso: o pessoal fica mais em casa porque não tá sobrando o dinheiro da diversão no orçamento familiar”, conclui o empresário sobre a diminuição nas vendas dos bares.

Quem também identifica uma mudança nos padrões de consumo é o empresário, produtor cultural e chef de cozinha Fredy Ferreira. Ele conta que, com relação a um dos seus nichos de clientes, aqueles que gravitam em torno da cena cultural local, houve uma queda na frequência ao seu restaurante, A Caiçara, devido a crise do setor nos últimos anos. “Fiz uma reforma querendo buscar o público que temos no sábado e domingo, pois são os dias em que o restaurante está indo melhor. São clientes acompanhados da família, que tendem a gastar mais por conta de estar ali no seu lazer, além de possuírem um poder aquisitivo um pouco maior. Essa é a galera que eu tenho buscado agora”, conta o empresário, sobre as atuais dificuldades.

“Outra questão é a debandada do trabalho presencial. As pessoas juntas no trabalho, eventualmente, saem e fazem um happy hour. Quando está cada um na sua casa, não. Essa condição do pós-pandemia, de trabalhar presencialmente menos dias na semana, acabou um pouco com a confraternização de trabalho, que é uma das coisas que nos sustenta”, acrescenta Fredy. Não é só o nicho “cultural” da cidade, ou o poder de compra, que estão enfraquecidos; a retomada está apresentando novas regras para um jogo que, antigamente, se percebia de todo sabido.

As reclamações foram inúmeras entre diversos outros empresários do ramo nos últimos meses. Talvez falar em retomada seja precoce. Na verdade o que pode estar acontecendo seja mesmo um recomeço. Conjunturalmente, o Brasil está um tanto diferente do país pré-pandêmico: o endividamento das famílias ainda possui valores recordes e, apesar dos recentes esforços de realavancagem do poder de compra, como o programa Desenrola e o recém aumento ao salário mínimo, feitos pelo governo Lula, a situação ainda não foi contornada.

O retroceder do disco trouxe outro ritmo e depois de mais ou menos vinte, trinta anos de um padrão de consumo repetindo-se por gerações a fio, aparentemente podemos estar experimentando uma alteração paradigmática de como se gasta dinheiro. Os produtos – experiências – pensados com base neste passado constante, aparentam divergir das expectativas dos jovens de hoje que, por contar com outro ideário de divertimento, bebem menos, vão mais cedo para casa, e vivem em um mundo de trocas imagéticas muito diferente daquele de seus pais, irmãos e primos mais velhos.

Estes jovens de hoje também surgem no mercado consumidor de forma muito diferente do seu equivalente de dez ou vinte anos atrás. O Brasil daquela época vivia próximo ao pleno emprego e vinha de um crescimento do poder de compra sem precedentes, a antítese de hoje em dia. As diferenças não estão só na conjuntura, hoje é muito difícil agrupar esta nova clientela. Além de atribuir-se uma profusa individualização, o jovem se “junta” pela internet através de nano nichos criados a partir dessas preferências individuais, dificultando ainda mais o dimensionamento de empreendimentos que costumavam atender às juventudes mais uniformes de antigamente.

De volta aos clientes de “todo sempre”, millennials e gerações anexas, estão apertados por dívidas, ou pelo desequilíbrio dos balancetes domésticos, podendo preferir gastos mais eventuais, em ocasiões especiais, como viagens – que tem seu setor em alta – eventos ou concertos internacionais, deixando a cervejinha corriqueira para outro momento. A torcida fica para que voltemos aos níveis de consumo de antigamente, quando éramos felizes e sabíamos, porém, este otimismo no novo governo deve ser pesado com uma boa dose de olhar crítico.

Portanto, retomada, em sentido literal, é um termo incipiente para o que estamos vivendo. O momento é de atenção para muitos empreendimentos. Produtos – ou experiências – de todo o sempre, que encontraram clientes aos montes por algumas décadas, podem estar vivendo talvez um declínio que não se deva só às condições estruturantes da economia e sim, a uma quebra de paradigma de consumo. Talvez ainda não estejamos identificando muito bem a música que está tocando. Enquanto aguardamos a alavancagem do próprio país, é tempo de ouvidos atentos.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Há saída para a violência?

Há que se ter coragem para assumir, em espaços conservadores como o Poder Judiciário, posturas contramajoritárias como as que propõe a Justiça Restaurativa

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima