A verdade por trás do que você come

Documentário mostra como os alimentos ultraprocessados são alterados na sua composição e são consumidos em larga escala ao redor de todo o mundo

E se nem todas as nossas escolhas relacionadas à alimentação fossem tão livres quanto parecem? Estreou recentemente, Big Food: O Poder da Indústria dos Ultra Processados, uma iniciativa do IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e do Coletivo Bodoque. O documentário, premiado internacionalmente, ainda não está disponível a todo o público, mas foi exibido em Curitiba no último dia 15, por conta de uma parceria entre os seus produtores, o Cine Passeio e o jornal Plural. O filme tenta desmascarar o nosso pretenso progresso alimentar através do consumo de comida industrializada. Alimentos ultraprocessados são aqueles que recebem muitas alterações na sua composição, por meio da adição de açúcares, sódio, gorduras e outras substâncias químicas, como conservantes, e são consumidos em larga escala, ao redor de todo o mundo.

Não chegam a dez as empresas que fabricam esses alimentos globalmente. Ainda que este limitado oligopólio sugira pequenez, essas corporações juntas, faturam, no Brasil, 700 bilhões de reais anuais, vendendo comida tão alterada em suas fábricas que nem de perto lembram aquela lasanha da sua avó, ou os biscoitos recém saídos do forno de sua tia. Essa substituição à comida tradicional, oferecida não só como inócua, mas em muitos casos, como saudável ou “rica em nutrientes”, é responsável hoje por mais de 70% das mortes mundiais, por conta dos desdobramentos de saúde que acarreta.

Como se não bastasse, estas mesmas empresas agora se apresentam como a solução para os problemas que causaram, introduzindo produtos pseudo-saudáveis, mascarados pelo seu marketing de alimentos bons pra saúde. Não só isso, financiam estudos para eximir-se de culpa e atribuí-la ao consumidor por suas pobres “escolhas” alimentares ou a falta de dedicação a exercícios físicos, como únicos e possíveis culpados da crise de saúde coletiva que criaram. Vivemos uma verdadeira epidemia silenciosa e mortal de doenças crônicas não transmissíveis como o diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares, de certa forma diretamente ligadas ao consumo de ultraprocessados. Mas como chegamos a isso?

Travestido de desenvolvimento está o descolamento total de hábitos que nos garantiram saudáveis por milênios e nos fizeram chegar até aqui enquanto espécie. Se numa antiguidade próxima, respeitávamos a sazonalidade dos alimentos, os tempos e fazeres da natureza, além de tê-la como fonte única e insubstituível de necessidades fisiológicas e nutricionais, hoje a indústria toma para si, a força, esse título. A falta de tempo, a colonização do consumo e paladar, a concentração da oferta alimentar em supermercados, o preço progressivamente mais baixo e a falta de uma educação alimentar adequada, estão nos empurrando ladeira abaixo.

Por outro lado, nos encurralando, essas indústrias exercem poderes exagerados através dos seus lobbies sobre legisladores que deveriam proteger ao grande público. Muitas vezes, os representantes destas empresas se sentam às mesas de negociação onde regulam a si mesmas, pensando em seus bolsos, ao custo da saúde coletiva. O namoro entre políticos e grandes corporações é cego, vem de anos e não tem preferências ideológicas. Porém, há de salientar a grande derrocada que a proteção alimentar vem sofrendo nos últimos anos sob a tutela sinistra de Bolsonaro e seus desmandos retrógrados. Ao mesmo tempo em que o presidente nos empurra para um Brasil fazendeiro da agro-indústria monocultora, ataca contrapesos e freios ao empobrecimento alimentar, como o fez, fechando o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e permitindo ataques ao Guia Alimentar Para a População Brasileira, documento elogiado mundialmente.

Mas como pode ser tão destrutiva uma indústria tão presente em nossas vidas? A resposta é complexa e enraizada muito mais fundo do que podemos imaginar. Em 1921, a grande indústria já promovia encontros de médicos para encorajá-los a receitar suas fórmulas de leite em pó para crianças brasileiras ao mesmo tempo em que demonizavam o leite tirado diretamente de vaca, fazendo seu consumo parecer anti-higiênico e impróprio, só para citar um exemplo. É claro que, dada a ciência da época, um poderia argumentar que talvez a conclusão fosse plausível, ignorando a motivação capitalista inerente à indústria, que já naqueles dias não era diferente de hoje, porém, o estrago começara a ser feito, cem anos atrás.

As “Big Foods” como são chamadas as grandes dos ultraprocessados, fazem um trabalho de criação de sua própria demanda já em crianças quase recém nascidas, através de fórmulas de alimentação, produtos, cujo marketing é voltado para crianças e, em última instância, lanches fáceis de preparar ou com nenhum preparo envolvido. Essa apropriação do paladar, sequestra as noções de níveis aceitáveis de sabores açucarados, gordurosos ou salgados, e faz com que, aos bilhões, pessoas continuem consumindo seus produtos, da mais tenra idade, até adultos – incluindo idosos – feitos de exageros, através de noções deturpadas de qualidade e boa saúde.

O documentário escancara essas e outras verdades num esforço louvável do Idec para disseminar informação. O desafio de reverter algumas gerações de subversões absolutamente nocivas para nós enquanto espécie, é muito grande. O filme deixa claro o poder e a influência que essas grandes corporações têm sobre o nosso espaço social e na saúde pública global. Fica claro o quanto estamos cegos sobre o que estamos consumindo, ao passo em que confiamos na propaganda da qual somos vítimas por toda uma vida. Nunca comemos tão mal quanto o estamos fazendo na modernidade. A batalha será árdua, mas a boa notícia é que ela já começou!

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