A gloriosa carne de onça curitibana

Sou carioca, mas a carne de onça curitibana fisgou meu coração

Tá aí um negócio que eu gosto: polos gastronômicos. No Rio de Janeiro, há um muito conhecido, o de Botafogo. Hoje, é por ali que está um dos melhores restaurantes do Brasil, o premiadíssimo Lasai. Acho um ambiente de competição saudável, que gera valor para todo mundo. Enfim, mas quero contar uma história, porque não é sobre eles que vamos falar. Há muitos anos atrás, a convite de uns amigos descolados, e uma situação estrutural de vacas gordas no país, fui conhecer les fameux escargots de bourgogne, num chique restaurante do polo da zona sul carioca. Cheguei morto de fome e lá estavam seis inocentes moluscos, em suas indefesas conchinhas para enfrentar minha fome de cinquenta pedreiros, a ser administrada via pinça e ganchinho. Não deu muito certo, é claro

Muito mais adequada ao meu apetite, e de nome igualmente exótico, a Carne de Onça de Curitiba, que já foi tema aqui da coluna, voltou a ser destaque recentemente. O prato, que é patrimônio imaterial da cidade, assim como são os famosos caracóis franceses no seu país, começou o processo de adquirir sua insígnia de Indicação Geográfica. Ao contrário da receita europeia, oriunda da haute cuisine, a nossa carne crua, com cebola, cebolinha, mostarda, servida na broa de centeio, é fruto de uma tradição popular elaborada e bem brasileira, um verdadeiro quitute de boteco, que alçou fama ainda na década de 50 e nunca parou de conquistar paladares locais e turistas.

“Ajudamos a tornar a Carne de Onça Patrimônio Cultural e Imaterial da cidade e agora fomos procurados pelo SEBRAE, para começar o processo de indicação geográfica” me conta Sérgio Medeiros, proprietário da plataforma Curitiba Honesta, responsável, entre outros, pelo festival do prato na capital paranaense. Sérgio está animado. Figura central na elevação da receita a patrimônio municipal, espera que a nova promoção dê fama a toda a gastronomia da cidade. “Qualquer pessoa que vier passear em Curitiba, de qualquer lugar do Brasil, vai querer comer carne de onça e isso faz com que gire a engrenagem de todo o sistema gastronômico”, adiciona o empresário.

Não é só a vontade que faz uma receita alcançar a insígnia de Indicação Geográfica. O registro acontece quando um prato, serviço ou produto alcança notoriedade expressiva por possuir uma característica diferenciada e ser produzido em um território específico. A IG é uma proteção social de tradição, história e cultura, que incide sobre o objeto. Ela ainda pode ser de dois tipos: Indicação de Procedência, quando a região é famosa pelo seu feitio/confecção, ou, Denominação de Origem, quando características geográficas (terroir) têm impacto direto na qualidade ou percepção do item.

“Nosso trabalho é perceber os produtos que têm fama e a partir disso desenvolver a instrução normativa, que diz como deve ser o reconhecimento de uma indicação geográfica”, explica Maria Isabel Rosa Guimarães, consultora e gestora de indicações geográficas do SEBRAE. “O órgão vai até aquela localidade e trabalha toda a documentação que é exigida. Depois temos que ter um proponente, que é uma associação formada a partir dos interessados. Trabalhamos então sua liderança para que haja visão de mercado, de negócios e para que a mesma possa futuramente dar continuidade ao trabalho: promover o produto, se envolver, se orgulhar dele e desenvolvê-lo”, conta a consultora.

“Gosto de citar o exemplo do Barreado. O primeiro passo decidir qual seria a receita do prato. Não se especificam quantidades neste momento, é dito o que “vai”, por exemplo: carne de segunda, cominho, etc… Então só se pode chamar Barreado do Litoral Paranaense, o barreado feito da maneira estabelecida pela associação. O que vai acontecer com a carne de onça de Curitiba é exatamente isso”, explica Sérgio Medeiros. “Eu quero é deixar um legado para a cidade, os pormenores da receita são o de menos. Se você quiser servir Carne de Onça de Curitiba, vai ter que pertencer a associação e seguir o combinado. Isso vai fazer com que o patrimônio sobre a receita se torne da própria cidade”, conclui o idealizador do Festival da Carne de Onça.

De fato, há benefícios observáveis em várias das IG espalhadas pelo mundo. Desde os vinhos que ostentam o selo de D.O.C. (Denominação de Origem Controlada), às receitas e serviços oferecidos que possuam a designação, percebe-se a qualidade autêntica dos produtos, além de se tratar de uma ferramenta de reconhecimento internacional. O território passa a ser descoberto através da ação e ampliam-se as potencialidades de se chegar a maiores e diversos mercados. Além disso, os produtos, por serem identificados qualitativamente, melhoram progressivamente em decorrência de todo o processo.

No entanto, nada é feito sem trabalho, “disseminar, contar, convencer o consumidor é a parte mais importante, porque nós temos bons produtos, temos várias indicações geográficas, mas se o consumidor não tiver o conhecimento, o orgulho, do que estamos falando, não há nem razão para existir. O Brasil ainda é novo neste processo, nós temos 101 produtos reconhecidos. A Europa tem mais de 3000. Só a França tem mais de 900. Nós estamos no comecinho de um longo caminho que pode ser trilhado ainda”, explica Maria Isabel.

Há gêneros alimentícios regionais que conquistaram o mundo, no entanto, nenhum foi tão bem sucedido como o vinho espumante da região de Champagne na França, onde a localidade se confunde com o próprio produto. Há um espumante de qualidade e autenticidade absolutamente comparáveis, o Crémant, de Luxemburgo. Porém, ainda que a qualidade do produto do país fronteiriço seja inquestionável, não partilha nem de perto da fama do seu primo francês. Isso nos traz um questionamento: os franceses são excelentes em convencer todo o resto do mundo sobre a qualidade de seus produtos, ou sobre o entusiasmo que os mesmos têm por eles?

De volta a Botafogo, meu amigo Eduardo, mineiro, fã de fartura, me pergunta com um sorriso jocoso: “E aí? Gostou?”. Eu, sem graça depois de me bater com as pinças, digo que os caracóis nem eram tão ruins. “Eu gostei mesmo foi da manteiguinha com o pão”, decreta o mineiro, orgulhoso do seu paladar brasileiro. Se o país europeu convenceu o mundo de que comer caracóis era chique, acredito piamente que com um pequeno ajuste a sua autoestima, e uma pitada de entusiasmo, os curitibanos terão muito menos trabalho com a sua maravilhosa Carne de Onça.

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