Mulheres trans driblam preconceito para entrar no mercado de trabalho

A assistente social Danielle considera-se privilegiada pela sua posição profissional e social

No país que mais mata mulheres trans, elas relatam os desafios para conquistar e manter um emprego
No Brasil, país que mais mata mulheres trans no mundo, a expectativa de vida dessas mulheres é de apenas 35 anos – menos da metade da expectativa para a população geral brasileira, que está em 77 anos.

O número escancara a mortal exclusão social das mulheres trans, que estão na linha de frente das inúmeras violências vivenciadas pelo segmento social LGBTQIAPN+.

Dados divulgados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e Rede Trans Brasil revelam que em 2021 foram registrados 140 assassinatos de pessoas trans, sendo 135 deles de mulheres. Os dados assustam e podem ser ainda piores, já que nem todos os casos são realmente notificados.

A violência e a exclusão aparecem em vários momentos da vivência dessas mulheres. As dificuldades de acesso à educação e para a colocação no mercado de trabalho são algumas das marcas da marginalização de pessoas trans. De acordo com dados do dossiê da Rede Trans, em 2021, apenas 4% da população trans feminina se encontrava em empregos formais.

Ter carteira assinada é um sonho distante para Emanuelle, 25 anos, de Grajaú – Maranhão, que sempre foi preterida nas entrevistas de emprego para as quais se candidatou. “Eles sempre diziam que meu currículo estava bom, mas davam prioridade para outra pessoa que estava em busca da vaga. Falavam que iriam me ligar, mas nunca me retornavam”, relata.

Desde os 12 anos ela trabalha com faxinas e, há aproximadamente um ano, está na recepção e na limpeza de um hotel no município onde reside. Mas, os perigos da marginalização sempre rondaram à porta, com um medo constante de ficar sem trabalho e precisar ir às ruas se prostituir para conseguir o sustento.

Nayla driblou o preconceito e hoje é professora do ensino fundamental. Foto: arquivo pessoal

Essa é uma realidade para pessoas transgêneras. A maioria não consegue concluir nem sequer o Ensino Médio e acaba se evadindo para trabalhar na rua, fazendo programa. Nessa situação de exposição constante, ficam ainda mais próximas de entrar para estatística de assassinatos com requintes de crueldade.

O receio é reforçado pelas várias situações de preconceito e violência que vivem diariamente. Emanuelle recorda uma situação vivenciada em um restaurante, no qual foi trabalhar em busca de um salário melhor. Com menos de um mês no novo emprego, ela encontrou uma antiga conhecida no trabalho. “Essa conhecida comentou que eu era uma mulher trans, e a dona do restaurante não sabia”, recorda. Já no dia seguinte, Emanuelle foi demitida, com a justificativa de queda no movimento. No entanto, os relatos apontam para outra razão. “Ela [dona do restaurante] relatou que, se soubesse que eu era homem, eu não tinha nem pisado os pés no estabelecimento dela que ela tinha nojo desse tipo de gente”.

Emanuelle conseguiu um print da conversa por aplicativo de celular onde o caso aconteceu. Esse registro poderia ajudar a entrar com uma ação por transfobia contra a ex-patroa, no entanto, ela preferiu não fazer a denúncia. “Eu não quis levar o caso adiante. Fiquei envergonhada e chateada com esse episódio”, aponta, recordando que isso ainda é muito recorrente no Brasil.

Tamanha violência tem impacto também na saúde mental. Ainda de acordo com o levantamento da Rede Trans, existe um alto índice de suicídio devido ao preconceito social, à falta de expectativa de vida dessa população, à disforia de gênero até mesmo exclusão familiar.

Caminhos de resistência

Existir em uma sociedade que violenta corpos trans é por si só um símbolo de resistência. “A gente sabe que a realidade do mundo do trabalho que perpassa as meninas trans é de vulnerabilidade social e marginalização”, aponta Danielle Basílio, 29 anos. Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Danielle é assistente social efetiva do INSS no município de Formiga-MG.

“Eu me considero uma mulher trans privilegiada, no sentido da posição social e econômica que ocupo”.
Para ela, a violência contra as mulheres trans é algo estrutural, que acompanha boa parte da vida dessas meninas e mulheres. Geralmente, os problemas vêm desde o começo do processo de transição, que muitas vezes começa na adolescência. O preconceito, a falta de apoio familiar e a evasão escolar têm impacto a longo prazo.

Paula encontrou seu espaço como microempreendedora. Foto: arquivo pessoal

A falta de escolaridade impede um bom ganho salarial, o que resulta na falta de recursos para custear o próprio tratamento hormonal, sendo assim muitas recorrem ao mundo da prostituição. “A gente sabe que o SUS garante a transição de gênero por meio da portaria que regulamenta o processo transexualizador, entretanto é um processo demorado e a forma como está organizado se concentra mais nos grandes centros urbanos”.

Os problemas no acesso à educação são exemplificados na trajetória de Nayla Maciel, 30 anos, de Serra Nova Dourada, no Mato Grosso. “Eu sempre quis ser advogada, mas sofri muito preconceito no ensino fundamental, então minha família tinha medo de me mandar para uma cidade grande para estudar e eu sofrer preconceito por ser uma mulher trans, eles queriam sempre me manter por perto”, recorda. “Guardei muita coisa para mim. Quase desisti de concluir o ensino médio, mas um dia, meu tio me deu conselho ao me ver chorando: pediu pra eu ser forte e aguentar mais um pouco”.

As perspectivas de conseguir um emprego eram baixas, mas conseguiu a primeira oportunidade como caixa de supermercado ao visitar o tio em outra cidade. Nayla considera que teve sorte, já que graças ao pouco de conhecimento de informática que possuía, conseguiu se destacar. Mais tarde, surgiu a oportunidade de ingressar no ensino superior. Cursou Ciências Contábeis e duas licenciaturas: Matemática e Pedagogia. Hoje ela é professora das séries iniciais do ensino fundamental e afirma que a formação foi o diferencial na sua trajetória. “Ser formada facilita as coisas para você, mas o preconceito sempre vai ter, [sempre vai ter] um olhar torto”, afirma.

No entanto, mesmo para as que conseguem vencer as barreiras e garantir a formação e a colocação no mercado de trabalho, os desafios não encerram por aí. “Quase não vejo uma mulher trans ocupando um cargo de importância numa grande empresa ou órgão público, ainda vemos a mulher trans tratada como prostituta, até mesmo nas redes sociais”, aponta Ana Paula Soares, 34 anos, natural de são Felix do Araguaia-MT, mas que hoje em dia reside em Goiânia. “A maioria dos empregadores não entende que a gente se porta como uma mulher convencional, acredito que ainda é bem notório o preconceito”, declara Ana Paula.

Para ela, o caminho escolhido para driblar as barreiras do preconceito foi ter seu próprio negócio. Cabeleireira, hoje ela tem o seu salão de beleza, mas afirma que o caminho para se tornar microempreendedora não foi fácil. “Venho de uma cidade muito pequena onde as pessoas na época não tinham o mínimo conhecimento nem sobre o que era ser gay”, recorda.

O caso de Isabella, 21 anos, moradora de Rondonópolis, no Mato Grosso, exemplifica as dificuldades vivenciadas. No início da produção da reportagem, ela trabalhava na portaria de um edifício. Desde o processo de contratação, ela afirma que os empregadores viram no seu documento que o nome não era retificado. “Não me perguntaram nada sobre o meu pronome de tratamento, porém falei que gostaria de ser tratada como Isabela!”, declara.

No entanto, no decorrer da produção da matéria, Isabela nos procurou para informar que teve problemas com uma moradora do condomínio onde trabalhava e foi demitida. Ela aponta que o motivo foi simplesmente o fato de ela ser uma mulher trans. Uma moradora a chamou de esquisita e com isso houve um problema, pois Isabela exigiu respeito. O caso chegou até a administração que decidiu a demitir.

Diante das dificuldades e do preconceito, muitas vezes elas buscam oportunidades em outro país. É o caso de Maria Eduarda, 26 anos, que é enfermeira e há um ano reside em Portugal, onde trabalha em um lar de idosos como Auxiliar de Geriatria. “Eu vejo que nós aqui na Europa não somos discriminadas como no Brasil. Apesar de existir preconceito é outro nível, é outro mundo!”, avalia.

Ela afirma que não teve dificuldade para trabalhar, por causa de sua passibilidade*, que fez com que os empregadores não a identificassem como uma mulher trans e possivelmente esbarrasse no preconceito social.

Embora tenha conseguido se estabelecer, constatar o alcance do preconceito no seu país natal é algo que a entristece. “Muitas fogem para cá para tentar viver melhor e em paz. No Brasil, não sei quando vai melhorar isso, e se vai melhorar um dia”, lamenta.

Contra o preconceito

As dificuldades de inserção no mercado de trabalho estão entre os desafios recorrentes para as mulheres trans. É o que apontam algumas integrantes do grupo “Transformar” – comunidade online no whatsapp formado por 43 mulheres trans que buscam compartilhar vivências e informações sobre a causa. Para elas, o que falta é um olhar de humanidade e de acolhimento nos diversos segmentos sociais.

O mercado de trabalho, no tocante ao preconceito, ainda é um desafio muito grande para a maioria. Existe uma grande barreira a ser vencida. Afinal, em uma sociedade tão preconceituosa, a dificuldade não é apenas de chegar ao posto de trabalho, mas também de permanecer. É um desafio diário lidar com a estigmatização e o preconceito, não só dos empregadores, mas também do público que é atendido pelas profissionais.

Iniciativa pela empregabilidade

Algumas iniciativas buscam mudar essas histórias. Como o projeto Transempregos que surgiu em 2013 com intuito de reunir currículos de pessoas trans e inseri-las no mercado formal de trabalho. Suas idealizadoras são Márcia Rocha, advogada, empresária e primeira travesti a usar o nome social na OAB, e Maite Schneider mulher trans palestrante e Militante de Direitos Humanos de pessoas transgêneras desde 1990. De acordo com dados do projeto, em 2022 houve um aumento de 8% na empregabilidade de pessoas trans em relação ao ano de 2021. Foram 4.002 oportunidades e aproximadamente 23 mil currículos cadastrados.

Orientação: Larissa Drabeski (jornalista e professora)

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