Uma iguaria bem curitibana

A carne de onça é um prato que tem como gênese a tradição boleira, botequeira, popular e festiva brasileira

Certa vez, uma amiga de Brasília tinha um compromisso de trabalho em Curitiba. Chegaria pela manhã e ia embora à noite. Preocupada em aproveitar seu pouco tempo na cidade, me ligou um dia antes e disse: “Felipe, eu só tenho três horas livres no final do dia, me leve para comer carne de onça naquele restaurante, por favor”. Meu conhecimento empírico sobre a popularidade do prato, atesta a sua qualidade: 10 entre 10 amigos meus vindos de fora o aprovam e repetem sempre que podem. O desejo de minha amiga foi atendido com louvor e fomos nós, entre cervejas e acepipes, comer a iguaria, patrimônio cultural imaterial da cidade. Eu mesmo, que não o conhecia antes de aqui chegar, sou um super entusiasta e fã da combinação carne, cebola, cebolinha e broa que, para mim, junto com mostarda preta e uma boa cerveja artesanal, é a cara de todo happy hour na capital dos pinheirais.

Este ano tivemos mais um Festival de Carne de Onça e seu idealizador, também proprietário do portal Curitiba Honesta, Sérgio Medeiros, comemora os mais de 5.000 pratos vendidos, nos 30 restaurantes participantes, em 15 dias inaugurais de festival. “Esse resultado ajuda a divulgar a carne de onça como Patrimônio Cultural Imaterial de Curitiba”, avalia o empresário. Aliás, título concedido há cinco anos e fomentado a partir da curiosidade e pesquisa do próprio Sérgio, que teve participação direta no feito. “Há uns seis anos me acendeu a ideia de começar a pesquisar sobre a carne de onça. Palmeira tornou o pão no bafo patrimônio da cidade e aí pensei: ‘puxa, em Curitiba, será que não teria nada?’.”

Iniciada sua pesquisa, Sérgio retrocedeu 70 anos na história para encontrar uma versão preliminar da origem do famoso prato. No começo, acreditou-se que a carne de onça era servida em um bar da rua Riachuelo, na década de 1950. Porém, havia muito mais camadas e brasilidades por trás de sua história. “Um dia, fui falar com o Ligeirinho, fundador do bar que leva o seu nome na rua Carlos de Carvalho. Ele é uma pessoa que eu conhecia há tempos. Teve o bar em diversos endereços antes de chegar lá. Na época, ele já padecia de problemas de saúde. Passamos uma tarde inteira conversando sobre gastronomia. Me ocorreu de perguntar-lhe sobre a carne de onça: ‘escute Ligeirinho, a carne de onça então era servida neste bar da Riachuelo?’. Ele diz: ‘não, era servida bem antes’.”

Surpreso, Sérgio descobre por meio do ex-garçom que a carne de onça, além de mais antiga, tem uma história não só de bares, mas também ligada ao futebol curitibano. “Nos anos 30 e 40, o Ligeirinho, que já tinha certa idade, antes de abrir seu próprio bar, havia sido garçom em diversos outros bares da cidade. Havia um time em Curitiba chamado Britânia, que foi por diversas vezes campeão paranaense. Tinha um cartola, ou dono do time, que se chamava Christian Schmidt, e ele tinha um bar na Marechal com a XV que se chamava o Buraco do Tatu. Tatu era o apelido do Schmidt e o Ligeirinho trabalhava lá. Cada vez que o time ganhava, o Christian comemorava com os jogadores no bar, com cerveja e servia uma baciada de carne de onça – que não se chamava assim na época –, mas era uma carne crua com cebola, cebolinha, temperada com azeite de oliva, sal e pimenta. Um dia, o goleiro, chamado Duia, disse: ‘poxa Schimidt, mas essa carne aí, nem onça come’. A partir daí, a galera começa a

pedir a carne que o Duia havia dito que nem onça comia. O nome então evoluiu rapidamente e se consolidou como carne de onça.”

Aparentemente, a iguaria se origina de outro prato, o alemão hackepeter, feito com carne de porco crua e este, como me contou Sérgio, pode ser encontrado em cidades como Joinville e Blumenau, em Santa Catarina. De toda forma, não é difícil encontrar pratos que sejam preparados com carne crua em diversas culturas. O talvez mais famoso, steak tartare francês, é um dos exemplos possíveis. Todas as versões contam com uma preparação autêntica que reflete saberes e tradições culturais locais. Exatamente como a carne de onça que, por conta da criatividade dos boleiros de outrora, tem seu modo único de preparo. “A carne de onça feita com a broa, cebola, cebolinha, temperada com sal, azeite e pimenta moída na hora é só em Curitiba”, concluiu Sérgio, depois de suas andanças pelo sul do Brasil atrás da origem do prato.

Seu trabalho de pesquisa foi apresentado ao então vereador Hélio Verbinski, que, motivado pela inquirição gastronômica, apresentou o projeto de lei em plenário municipal, que garantiria à iguaria o título de patrimônio. Obteve grande êxito na sua aprovação e posterior sanção pelo ex-prefeito Gustavo Fruet. “Desde então, nós temos feito os festivais, este já é o quinto. Cada vez mais vemos o prato ser servido em mais bares e mais pessoas apreciarem a iguaria. Eu fico muito feliz porque, um dia, quando não estiver mais aqui, a carne de onça ainda vai continuar a ser Patrimônio Cultural da Cidade de Curitiba”, comemora o idealizador do evento.

“Patrimônio” vem do latim patrimonium (patri, pai + monium, recebido). A palavra está, historicamente, ligado ao conceito de herança e significa: herança familiar ou conjunto dos bens familiares. O termo pode ser entendido como o fruto do elo anterior que nos une e nos gera. Em seu website, o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional se refere ao patrimônio imaterial como sendo aquele que “é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana”.

Nesta terra de poucos cidadãos que se identificam com uma narrativa consolidada de país e da coisa pública, foi fácil encontrar céticos e críticos à medida governamental que, na época de sua aprovação, foi denunciada como inútil ou não cabendo nas prioridades dos citadinos curitibanos. Cinco anos se passaram e provaram que a declaração do título é um exemplo bem sucedido da criação de brasilidades, que possam nos identificar como um povo a caminho de ser mais coeso. Que crime seria não reconhecer a altura de um prato que tem como gênese a tradição boleira, botequeira, popular e festiva brasileira. Que crime seria não elevar algo tão brasileiro a um totem que nos una no partilhar aquilo que somos.

O caminho começa a ser trilhado e ainda temos muito chão pela frente. Mas, por enquanto, viva   a carne de onça, que é grande, é curitibana e é nossa.

Festival da Carne de Onça começa nesta terça (21) em 30 bares de Curitiba

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