A agroecologia também pode ser pop

Feira do MST em Curitiba mostra o smil potenciais de um modo diferente de encarar o alimento e a Natureza

A cidade viu uma praça de alimentação diferente no mês de novembro. Ao lado de um grande shopping da capital, uma feira enorme de alimentos orgânicos com discussões, palestras, comida gostosa e muita música tomou o palco do centro da cidade. A vigésima Jornada da Agroecologia teve neste ano Curitiba como sua anfitriã e contou com a passagem de milhares de pessoas durante seus cinco dias de funcionamento. De ida indispensável para aqueles que pensam a comida como ato político e têm paixão por insumos, acompanhei André Pionteke, chef de cozinha, empresário e ex-participante do programa televisivo Masterchef Professionals; e também a jornalista de gastronomia Flávia Schiochet num deleite de papos, sabores e construção de conhecimento dentro desta temática de vocação nacional inegável.

“Agrofloresta, dentro da agroecologia, é o sistema mais avançado que existe: é você imitar a floresta e montá-la de forma produtiva. Além de cumprir com todas as funções ecológicas de uma floresta, ela ainda produz muito alimento, madeira, remédio, biomassa e, além de tudo, produz solo. Toda aquela ciclagem proveniente da floresta, das folhas, dos galhos, já era utilizada pelos indígenas para fazer solo. Trata-se de um conhecimento ancestral aplicado. Inclusive, há pesquisadores que dizem que talvez parte da própria Amazônia seja uma grande agrofloresta que tenha sido transformada ao longo de gerações”, nos explicou Priscila Facina Monerat, Engenheira Florestal da Cooperativa Central da Reforma Agrária do Paraná – CCA, que foi nossa cicerone, enquanto passeávamos em meio à infinidade de produtos ofertados nas barraquinhas.

Este método de fazer com que a flora converse entre si, sem usar defensivos agrícolas, maximizando os resultados, além de formidável, é uma oposição veemente ao nosso meio de produção em voga, intensivo no uso de agrotóxicos, monoculturas e degradação do meio ambiente. “A agrofloresta é muito diversificada. A sucessão de plantas mexe diretamente com a nossa alimentação por conta do volume produzido e da variedade. Isso vai mudar a alimentação porque apresenta uma variedade muito maior de frutas, legumes e etc, produzidos em cada propriedade”, observa Priscila. No que tange aos benefícios que se opõem à produção atual, que limita muito a variedade de produtos oferecidos nas gôndolas de supermercado, a proposta agroflorestal tem potencial infinito na introdução de novos e resgate de antigos gêneros alimentícios nos pratos dos brasileiros, valorizando a ingestão nutricional geral da população.

Quem protagoniza essa produção no Brasil é o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra. Marcado pela luta por terras e o reconhecimento da sua legitimidade, o MST é também responsável pela organização da Jornada Agroflorestal. “É impossível falar de soberania alimentar, produção de orgânicos e segurança nutricional no Brasil sem falar dos movimentos campesinos, quilombolas e indígenas e suas formas de produzir alimento. A agrofloresta é uma dessas tecnologias de produção de comida. Ignorar a importância destas formas de viver e produzir comida e conhecimento é afirmar que não se importa com agricultura sem veneno, e sim com o discurso de gostar de comida sem veneno”, diz, Flávia Schiochet, que, como muitos de nós, não vê isenção possível acerca de um tema tão nevrálgico para a alimentação no país.

Sobre a parte que levou muitas pessoas a conhecer a feira, em especial com as barrigas roncando, ao redor do meio dia, Flávia completa, “a praça de alimentação da jornada da agroecologia refletiu uma parte da cultura alimentar brasileira no que há de mais substancial e menos folclórico no assunto: comida para sustentar o corpo, com sabor e conhecimento. Petiscar um amendoim doce, tomar um suco de goiaba, comer arroz com espetinho, vinagrete e farofa: nada disso é excepcional pelo ineditismo, e sim por ser resultado de resistência no campo para que se continue produzindo comida boa para todos, não só para paladares apurados”, diz a jornalista.

Inegavelmente o impacto da agrofloresta é muito promissor sobre a alimentação brasileira. Por combinar inúmeras espécies, a variedade da flora alimentícia das lavouras é enorme, diversificando em muito a monotemática alimentação moderna que nos adoece. Além disso, “a planta tira minérios de uma terra muito mais rica, o alimento fica com um leque de nutrientes muito mais complexo. Em especial quando comparado com outras terras de poucos nutrientes. A resposta nutricional é mais complexa e diversa pois o alimento da agrofloresta é bem mais saudável”, nos conta Gabriel Francisco Cerutti Bonatto, nutricionista da Associação de Cooperação Agrícola e Reforma Agrária do Paraná – Acap, que também nos acompanhava na nossa visita.

Quem também faz coro com relação a qualidade dos insumos é o chef André Pionteke. Acostumado a trabalhar com alimentos orgânicos durante a sua experiência como cozinheiro de alta gastronomia, André observa, no entanto, que devido ao vanguardismo das técnicas, alguns aspectos mais organizacionais podem deixa um pouco a desejar, “em vários casos, os fornecedores se prontificaram a produzir um determinado período de tempo, por conta disso, eu colocava no cardápio um prato com os insumos deles e no segundo ou terceiro pedido, acabava recebendo negativas do produtor por conta de algum problema que tinha acontecido na colheita”, conta o empresário.

Porém, as ambições da organização são grandes e o MST se prepara para não só contornar esse problemas, como também para expandir suas lojas de redes próprias Brasil afora. A meta é abrir mil lojas da sua marca de produtos orgânicos e agroecológicos, a Armazém do Campo, por todo o Brasil. Além do desafio logístico que é se tornar o maior hub produtor e organizador de alimentos orgânicos no mundo, o movimento ainda tem uma guerra ideológica contra a narrativa do agronegócio pela frente. “Eu acho que nós ainda temos uma barreira com relação a um grupo de empresários que é contra o movimento do MST. Tem muita gente que boicota e não quer comprar por conta desse preconceito”, nos diz André Pionteke, sobre a polarização sufocadora das boas ideias, na qual vivemos.

Não é a primeira vez que o famoso cozinheiro vê uma mudança parecida dentro do seu metiê, “a gente tinha a movimentação dos produtos orgânicos na gastronomia há uns dez, quinze, anos atrás, quando o orgânico ainda era muito caro. Você tinha poucos fornecedores, tínhamos que ir à fazenda do produtor inúmeras vezes: fazer a colheita, trazer para o restaurante, limpar, beneficiar e só depois poder usar. Essa movimentação começou com os restaurantes de alta gastronomia, que acabaram criando desejo em outras classes e gerando interesse neste produto”, nos conta o chef. “Das classes mais abastadas, o interesse acabou chegando na classe média alta, depois na classe média e hoje você encontra orgânicos até no sacolão, porque foi uma coisa difundida durante anos”, conclui.

“Eu acho que esse trabalho é muito legal dos chefs de cozinhas, cozinheiros e empresários donos de restaurantes em se preocuparem e investirem um pouco esse tempo e dinheiro, mesmo sem ter tanta rentabilidade nesse primeiro momento, para começarem a divulgar esse cultivo, para que desperte o interesse em outras pessoas em diversas camadas sociais”, completa Pionteke, marcando um posicionamento raro entre pessoas na sua posição: o de alinhamento político factual sobre o alimento como fonte de preservação e vida. No Brasil é impossível dissociar o modelo hegemônico do agronegócio da exploração sobre a terra, ainda que a maciça propaganda tente nos convencer do contrário.

Não é uma questão partidária, ao menos era para isso que o brasileiro já deveria ter acordado: a dialética proposta pelo MST, através da sua agroecologia, é uma questão de vida. O método é o diálogo com a terra, sua preservação e seu uso harmônico. É alinhar as nossas necessidades de variados nutrientes com outras culturas que não a monocultura imposta pela indústria. É nos reintegrar enquanto animais habitantes do mesmo planeta de tantos outros seres. Por último, é dar ao povo brasileiro o protagonismo de produção que ele nunca teve. Os chefs de cozinha têm grande papel nessa transformação, mas somente quando eles e o restante da população entenderem que ecologia sem luta de classes é no máximo jardinagem e marketing barato nas redes sociais.

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