Os Parques das Montanhas Rochosas dos Estados Unidos

Depois de sair do Canadá, fui de motorhome para conhecer os parques da região de Montana e Wyoming nos Estados Unidos

Parte I: Parque Nacional Glacier

Após a volta do Alasca, a Fran precisou voltar para o Brasil e chegou a vez do meu primo Thiago conhecer o Paçoca. O Thiago é dez anos mais novo do que eu, ama as caminhadas e fez todo o planejamento dos 40 dias em que faríamos em conjunto, de Calgary, no Canadá, até Chicago.

Depois dos parques canadenses, nós entramos nos EUA pelo estado de Montana. A fronteira foi tranquila para mim, mas não para o Thiago. Em princípio, era uma fronteira no estilo drive thru – não seria preciso nem sair do carro. Quando chegou a nossa vez, uma senhora irritada olhou os nossos passaportes e resmungou um “What the hell you guys are doing here?”.

Pensei comigo mesmo que, no fundo, bem no fundo mesmo, no sentido mais metafísico da pergunta, eu não sei bem por que diabos eu inventei de fazer a viagem e por que eu estava lá, no meio do nada, com um motorhome, fugindo do mundo. Só sei que mesmo sem saber explicar o motivo, foi uma decisão inevitável. Minha viagem é uma manifestação do inutensílio de Leminski: aquelas coisas que prezamos e não precisam de um porquê.

Olhei para a senhora e contei a minha história apreensivo – desde que virei cigano, não sei bem como os policiais da fronteira vão lidar com o meu, digamos, “projeto”. A senhora pegou os nossos passaportes e foi conferir algo no sistema, dentro do escritório da fronteira. Ela voltou dizendo que comigo estava tudo bem, mas com o Thiago, não.

O começo da Going to the Sun Road, onde o Paçoca ainda poderia transitar.Foto: André Tezza

O Thiago precisou descer do Paçoca e ter uma conversa na famosa salinha. Quando voltou, meio pálido, explicou o que aconteceu: na primeira entrada dos EUA, quando estava a caminho do Canadá, a imigração não havia pegado as digitais dele – aparentemente, houve algum erro. Em Montana, foi o momento de corrigir o problema. Susto tomado e passado, passaportes devolvidos, começamos a estrada que chegaria em um dos pontos altos da viagem: o Parque Nacional Glacier.

A chegada foi épica. Estava com sol e chuva, com um arco-íris extraordinário no horizonte, como nunca vimos antes. As cores eram vívidas e a nitidez incomum – não sei quais foram as razões atmosféricas para que algo tão potente aparecesse, só sei que foi de uma beleza descomunal.

Dentro do Glacier, eram os últimos dias em que o camping Saint Mary, onde o Paçoca ficaria estacionado, ainda estava aberto. Com a aproximação do inverno, os campings dos estados mais frios fecham, porque a temperatura é brutal e a água congela.

Vista do Parque Glacier a partir do camping Saint Mary. Foto: André Tezza

Desde que chegamos, o Thiago estava bastante apreensivo. Pelas pesquisas dele, o melhor do Glacier era o Logan Pass, um passo de altitude no centro estrada que corta o parque – a Going to the Sun Road. Este trecho, diziam todas as avaliações, é sublime. Mas havia um problemaço: a rodovia é estreita, com curvas acentuadas, passando por túneis baixos. Placas por todos os cantos diziam que motorhomes com mais de 20 pés eram proibidos de circular – o Paçoca tem 25 pés. A coisa é bem controlada: em um dos centros de visitantes, um guarda-parque nos parou e veio se certificar de que nós não iríamos inventar de fazer a estrada.

Então começamos a pensar em alternativas. A primeira foi tentar chegar no Logan Pass de bicicleta. Eu confesso que de início achei aquilo uma loucura, mas o Thiago insistiu: afinal seria o melhor passeio do parque. No dia seguinte, cedo, deixamos o Paçoca no ponto mais perto autorizado, tiramos as bicicletas dobráveis do porta-malas. São bicicletas urbanas, sem nenhuma vocação para a estrada, que comprei usadas no Canadá.

No começo da pedalada, um motorista parou uma caminhonete para falar conosco. Era um sujeito um pouco mais velho, fala mansa e a voz grossa. Ele viu incrédulo nossas bicicletas dobráveis e perguntou, “vocês conhecem a região, certo?”. Dissemos que estudamos o roteiro. “Há muitos ursos no parque, inclusive passei por um urso pardo na direção em que vocês estão indo”. Então eu disse que estávamos levando spray de urso. O sujeito não se tranquilizou com a informação, “Vocês sabem como o spray de urso é conhecido no Alasca? O pessoal diz por lá que o spray é a camisinha do urso”. Demos risada, mas desde a morte dos turistas em Banff, temos levado bastante a sério a possibilidade de um ataque.

As cores de outono já estavam visíveis no parque. Foto: André Tezza

Voltamos a pedalar e não demorou muito para que eu descesse e alternasse a subida a pé, empurrando a bike. Nós andamos bastante, durante umas boas quatro horas, mas foi impossível vencer – era muita subida. Não ficamos muito longe do Logan Pass, uma pena. Mas todo o esforço foi recompensador: as vistas eram incríveis, passando por montanhas nevadas, florestas e lagos. E na volta, só alegria: uma descida épica. Eu estava tão feliz naquele momento, deslumbrado com o entorno, já com os laranjas vívidos do outono. Com os olhos marejados, foi um daqueles momentos em que temos a certeza de a vida pode ser extraordinária.

Voltamos para o camping e o Thiago então propôs um segundo plano mirabolante para chegar no Logan Pass: íamos pedir carona. Eu fiquei apreensivo. A ideia era pegar uma carona, chegar no Logan Pass e fazer uma trilha puxada. Minha preocupação: e se não conseguirmos uma carona para a volta? O Thiago disse com a naturalidade de quem é 10 anos mais novo e faixa preta no karatê: “é descida, daí a gente volta a pé”. Seriam só 28 quilômetros para fazer a pé. Fora a trilha puxada.

No dia seguinte, acordamos cedo e num frio do cão, ao lado do encontro da estradinha do camping com a Going to the Sun Road, começamos a arte de, com aquela cara de quem precisa de ajuda, esticar o polegar para cada carro que passava. Ficamos cerca de uma hora tentando carona. Alguns abriam um sorriso, mas a maioria nem olhava para nós. Sabemos o que é isso, afinal todos temos apreensão de dar carona. Tentamos algumas estratégias, como por exemplo eu ficar segurando a câmera fotográfica na mão – uma câmera profissional que, na minha santa ingenuidade, poderia dar a entender que seríamos pessoas sérias e não psicopatas prontos para o próximo assassinato. Nada deu certo. O Thiago estava desconsolado.

Então propus que fizéssemos uma trilha no outro lado do parque. Nós já tínhamos ido lá antes e feito uma trilha curta. Mas havia uma maior e que estava bem avaliada. Era a trilha que chegava no glaciar Grinnel.

Eu e o Thiago na trilha Grinnel Glacier

Há males que vêm para bem: esta trilha foi a mais bonita de toda a viagem com o Thiago. Seguramente está nas mais lindas que fiz na vida – só não digo que foi a mais extraordinária de todas porque na minha carreira de trekkeiro eu fiz o caminho que vai até o campo base do Everest, no Nepal, e o circuito do Torres del Paine, no Chile.

A trilha do Grinnel Glacier passa por vários lagos – o primeiro deles, Swiftcurrent, tem um espelho d’água tão perfeito que as fotos chegam a ficar estranhas, porque parece algo improvável de acontecer na natureza. E então começamos a subir. No total, são 18 quilômetros, com 800 metros de desnível. Eu achava que nunca mais conseguiria fazer algo assim. O que certamente ajudou é que os americanos, como já escrevi tantas vezes, levam os parques nacionais muito a sério. A sinalização é perfeita, com um bom mapa no começo da trilha (em que podemos tirar foto e conferir no celular) e muitas placas pelo caminho. Quase no término, há bancos para descanso e um banheiro. A trilha tinha até alguns trechos em que visivelmente a dinamite foi utilizada, para que ninguém precisasse escalar algo durante o percurso. Imagino que este procedimento deva ser antigo – hoje o protocolo da natureza é bem mais conservacionista. A rota vai subindo com suavidade e passando por desfiladeiros até chegar no glaciar que dá nome à trilha.

O começo da Going to the Sun Road, onde o Paçoca ainda poderia transitar.

Enquanto andávamos, fomos ultrapassados por uma senhora. Ela estava sozinha, tinha um fôlego impressionante. Fizemos uma boa parte do trajeto próximos e comentei com o Thiago que gostaria de tirar uma foto dela. Com isso, me aproximei e começamos a conversar.

Margarida tem 71 anos. É uma recém aposentada – trabalhou até os 68 como professora de inglês para crianças. Seus alunos eram crianças que tinham o inglês como segunda língua – filhos de latinos. Mora no Texas, com o marido e o filho, ambos a esperavam no estacionamento. Conversamos muito sobre viagens – ela passeou um bocado pelo mundo e nos disse que um dos destinos favoritos era o México. Perguntei se ela se sentiu insegura por lá e ela me respondeu que quem vive com medo não vive a vida.

A professora Margarida, 71, que nos acompanhou durante a trilha. Foto: André Tezza

Quando terminamos a trilha e chegamos no estacionamento, fui correndo no Paçoca pegar a melhor lente para retrato e o flash. Teria de ser rápido – quanto tempo o marido ficou esperando com o filho? Mais de cinco horas. Conhecer a Margarida foi um dos presentes que a viagem me deu.

Terminado o Glacier, fomos para o Yellowstone, assunto da próxima coluna.

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