Cidades são como livros – elas podem ser lidas

Marcelo Almeida fala sobre os livros que ensinaram a ele um modo diferente de olhar para a cidade

Numa tarde de 2002, eu e Jamil Snege, o “Turco” – que foi uma das melhores pessoas com quem tive a oportunidade de conviver – conversávamos sobre as calçadas de Curitiba. Nosso assunto era a dificuldade de flanar pela cidade sem se preocupar com os obstáculos espalhados pelos passeios e calçadas: pedras soltas, calçamentos escorregadios, mal projetados e mal executados.

Lembro que era inverno. Jamil foi até a cozinha e passou um café no filtro de pano. Que delícia! Nada de cápsulas ou de expresso. Ele e eu sempre amamos livros e café e compartilhávamos também uma característica física, a cabeça careca.

Após o café e um pouco antes de me despedir do Turco, lá veio ele com dois livros: “Por amor às cidades”, de Jacques Le Goff e “Morte e vida de grandes cidades”, de Jane Jacobs.

Le Goff era um historiador francês, um especialista em Idade Média que morreu aos 90 anos, em 2014. Seu livro revela um extraordinário carinho com o leitor. Ele começa esclarecendo o que significam as palavras civitas, cité, ville. Depois decodifica a Paris medieval, fala sobre a desruralização da cidade como um fenômeno do século XIX e termina com o seguinte questionamento: existe o “fim da cidade ou a cidade sem fim?”.  “Por amor às cidades” tem um atrativo especial, que são as lindas ilustrações.

Jane Jacobs foi uma escritora e ativista política do Canadá, que morreu aos 90 anos em 2006. Ela escreveu sobre a função de um bairro, de uma rua, de um parquinho de crianças. Reflete sobre como é importante o planejamento urbano como instrumento para resgatar a atmosfera de alegria, companheirismo e bem-estar nas ruas. Jane Jacobs tem uma tese que me conquista pela simplicidade: uma rua movimentada consegue garantir a segurança; uma rua deserta, não. Ela fala de segurança pública sem usar uma palavra sequer relacionada com armas ou viaturas. É uma fera!

Foi com Le Goff e Jacobs que o Turco me aproximou dessa visão inteligente das cidades. Encontrei depois “Acupuntura Urbana”, de Jaime Lerner, e “Cidades para pessoas”, de Jan Gehl. Lerner, que em dezembro último completou 81 anos, é minha referência em urbanismo. Meu exemplar de “Acupuntura Urbana” é filho único; ganhei do autor a última versão revisada antes de ir para a gráfica. Trata-se de uma metáfora construída com maestria sobre o urbanismo como um tipo de acupuntura. Com um toque mínimo em um determinado ponto, o organismo reage; com uma intervenção em uma determina área, a cidade se revitaliza. Jaime Lerner cita o exemplo da gota de melado. Se você derrama uma gota de melado sobre uma superfície, dezenas de formigas serão atraídas para aquele ponto. Com as pessoas e as ruas e bairros é a mesma coisa, ele garante. Jaime, que bom ser seu amigo!

Jan Gehl é um arquiteto e urbanista dinamarquês, um planejador urbano que se posiciona a favor dos pedestres e dos ciclistas.

Pense em um livro bom. Pensou? Então multiplique por dez. Você chegou perto de “Cidades para pessoas”. Qualquer homem ou mulher com mais de 16 anos deveria ler. É incrível a facilidade com que ele decifra o urbanismo e o torna compreensível para todos. Com uma melodia só dele, o dinamarquês vai te ensinando como planejar uma cidade segura, saudável, sustentável e viva. Não leu ainda? Vai comprar!

Primeiro foram os livros e agora é uma experiência que abre meus olhos. Hoje posso afirmar que a dimensão humana do entorno muda quando nos tornamos pedestres ou ciclistas. Faço uma vez ao dia um pequeno trajeto de bicicleta e com isso enxergo a cidade de uma nova forma. Antes a cidade passava por mim. Agora eu é que passo por ela. No automóvel, a velocidade do motor e a carapaça de metal te isolam. Quando me desloco de bicicleta percebo o cheiro do asfalto, os sons da cidade, o vento no rosto e o desrespeito de alguns motoristas por ciclistas. Curitiba está no nível dos meus olhos. Vou lendo nossa cidade como li Jamil, Jan, Jacques, Jane e Jaime – todos com J, me dou conta agora.

Acabo de sentir uma inveja branca dessa turma. Quem sabe mudo meu nome para José Almeida?

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