Os museus e a cultura: a construção de um espaço verdadeiramente plural

Num contexto de crescentes manifestações de ódio, é urgente desconstruir a visão de que os museus são espaços antiquados

O investimento na cultura e nos museus faz parte dos elementos essenciais de qualquer plano de governo. É necessário pensar, para além da manutenção, que requer um cuidado especial com o acervo, em formas de incentivar o prestígio e a valorização dessas instituições, desde a elaboração de materiais educativos até a visita em si.

Isso porque o museu não se limita ao seu espaço físico, suas fronteiras se estendem para as salas de aula, para as ruas da cidade. Trata-se de uma parte importante da formação cultural da população, que deve envolver, necessariamente, um diálogo com os movimentos e problemáticas sociais e uma visão mais ampla e tolerante com relação ao diferente.

Em um contexto de crescentes manifestações de ódio às minorias ao redor do mundo, torna-se urgente desconstruir a visão de que os museus são espaços antiquados, que somente expõem o passado sem contribuir com uma reflexão presente, reforçando seu papel de agentes questionadores, que abraçam o pluralismo, mas que sobretudo entendem a diversidade e as desigualdades sociais.

Nazismo e cultura: repressão e controle

Em janeiro de 1933, o partido nazista subiu ao poder e deu início a um projeto de governo que envolvia uma revisão cultural da sociedade alemã. Era necessário, para tanto, recuperar os valores tradicionais de um “povo ariano”. A influência daqueles considerados estrangeiros, invasores, especialmente os judeus, foi sendo mitigada aos poucos.

As organizações artísticas e culturais, manipuladas por Joseph Goebbels – Ministro da Propaganda e Esclarecimento Popular -, foram elementos fundamentais para a condução de um projeto de sociedade. Somente aquilo que replicasse ideologia e política nazistas seria aceito: organizações culturais judaicas e de qualquer outro grupo considerado “degenerado”, inimigo, eram consideradas suspeitas e proibidas. A queima de livros em diversas cidades da Alemanha, ainda em 1933, ilustra essa censura.

Com o objetivo de formar um “novo homem”, modelo da raça pura ariana, algumas características passaram a integrar a arte e a propaganda: a valorização da família patriarcal, da vida rural, da raça e do Volk (unidade nacional). As “virtudes” do “novo homem”, como lealdade, luta, disciplina e o auto-sacrifício do indivíduo em nome da nação, também integram a estética do partido nazista.

Nas artes visuais, prevaleceu o realismo clássico, em imagens que exaltavam a vida no campo, a família, a comunidade, o heroísmo na guerra. A ideia de “belo”, tão exaltada pelos nazistas, era simultaneamente contestada pelo surgimento de tendências mais abstratas do modernismo, que imprimiam em sua arte um vetor baseado no diálogo, no contraste entre artista e público.

Um exemplo da contraposição de tais valores nas artes foi quando, em 1937, duas exposições ocorriam simultaneamente: a chamada “Exibição de Arte degenerada”, com obras de artistas “desviantes da verdadeira arte” – dentre eles, Marc Chagall, Paul Klee e Wassily Kandinsky – e a chamada “Grande Exibição da Arte Alemã”, trazendo a estética e os valores do partido. De um lado, elementos “estranhos” ao Volk, de outro, a arte que deveria ser admirada e que transmitia uma visão única e “pura” de um povo alemão glorioso.

A empreitada do partido nazista no terreno da cultura pode ser compreendida a partir da ideia de um esforço “para criar uma cultura totalizante”, concebida pelo historiador alemão George Mosse: atingir também a vida comum, as camadas mais “baixas” da cultura cotidiana, além da “alta” cultura. Pode-se dizer, portanto, que a conduta do regime nazista não é definida pelo apoio ou pela repressão, mas pela apreensão, controle e utilização dos espaços culturais para disseminação de uma ideologia e supressão completa daquilo que era considerado oposto.

Museus em retirada? Uma reflexão sobre o futuro das instituições

Em 2021, o crítico de arte e professor de história da arte da USP, Tiago Mesquita, publicou um artigo na revista ARS intitulado de “Museus em retirada: até onde vai o pluralismo das instituições?”. O texto aborda o momento em que a exposição itinerante “Philip Guston Now”, que relaciona imagens feitas pelo artista durante a ascensão da era Nixon, com situações de racismo na era Trump, foi adiada nos Estados Unidos e na Inglaterra. O professor buscava entender as razões da reação das instituições, logo após as manifestações resultantes do assassinato de George Floyd, e como estas deveriam enfrentar as contradições apontadas pelos novos movimentos sociais.

Ao lado da discussão sobre o conteúdo da obra e as especificidades do movimento Black Lives Matter (BLM) nos Estados Unidos, me parece fundamental a reflexão do autor a respeito do papel dos museus no atual contexto de conflitos sociais. Não é mais possível evitar certos “debates espinhosos”, contradições entre o que é exposto e o que é a realidade para fora das portas dos museus. É essencial mergulhar nessas discussões, estar em contato com outras instituições, para que a função desses espaços seja cumprida: a educação para uma visão plural e para a quebra de preconceitos.

Ao evitar certos temas, o museu cai na perigosa armadilha de estar desatualizado, de ser visto como um espaço antigo e pouco acessível às contradições sociais do nosso cotidiano. A verdadeira pluralidade deve envolver, necessariamente, o debate sobre as desigualdades, as assimetrias, a manutenção de um status quo e a forma como estas discussões devem estar inseridas no conteúdo museal.

Referências:
https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/culture-in-the-third-reich-disseminating-the-nazi-worldview
MESQUITA, Thiago (2021). Museus em retirada: até onde vai o pluralismo das instituições?. ARS (São Paulo), 19(42), 359-395. https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2021.188126

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