O respeito pelo patrimônio e o uso do acervo em iniciativas educativas

Os que se encontram com esses elementos poderão também, no futuro, imaginar o coração que batia junto com a história, as mãos que o sustentavam e as sensações de seu dono durante e após o Holocausto

Objetos carregam testemunhos silenciosos que contam histórias de indivíduos, famílias, situações e até mesmo de civilizações. Mas nem sempre as sociedades reconhecem o patrimônio como portadores de elementos que conectam os observadores a essas narrativas. Nosso país convive com esse menosprezo – do descaso no zelo a acervos (como o incêndio no Museu Nacional em 2018, no Rio de Janeiro) a atos deliberados de vandalismo.

Em 8 de janeiro deste ano, o Brasil inteiro assistiu perplexo aos ataques que resultaram na invasão e depredação das sedes do três poderes, em Brasília (DF). Até o momento, mais de 152 pessoas foram denunciadas pela Procuradoria-Geral da República por envolvimento nos atos antidemocráticos. Entre os objetos destruídos, estão cadeiras projetadas pelo arquiteto e designer Jorge Zalszupin e uma escultura de parede do artista Frans Krajcberg. Os dois nomes têm algo em comum: são poloneses que sofreram com a perseguição nazista e reconstruíram suas vidas no Brasil.

A partir dos recentes acontecimentos em nosso país, onde objetos históricos e artísticos foram brutalmente destruídos, sentimos a necessidade de abordar questões referentes à importância da preservação da memória e da história numa sociedade.

Educação a partir do acervo

Os museus têm a importante função de salvaguardar, preservar e apresentar tais patrimônios à sociedade – e mais ainda, contar as histórias neles contidas. O departamento pedagógico procura constantemente conectar trajetórias pessoais por meio de objetos e documentos diversos, muitos deles doados por sobreviventes do Holocausto e por seus familiares. Por isso, existe a necessidade de constante capacitação e formação relacionadas ao acervo, para que este seja cada vez mais significativo e dialogue com professores, mediadores e visitantes em geral.

Entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023, parte da equipe desse departamento participou de uma importante capacitação no Museu do Holocausto de Jerusalém, o Yad Vashem, em Israel. Este museu é referência mundial em acervo, educação e pesquisa sobre o genocídio. A capacitação ocorreu na Escola Internacional para o Estudo do Holocausto, fundada em 1993, e que é responsável pela organização de programas educativos e pela produção de materiais didáticos direcionados a diferentes públicos e instituições educacionais em Israel e no exterior.

Durante dez dias, mergulhamos em diversas atividades que abordavam distintos aspectos sobre a história do Holocausto e nos traziam reflexões sobre a importância da educação e transmissão, preservação da memória e, principalmente, a relação entre esta história e o tempo presente. Fomos inspirados por iniciativas da instituição israelense, como o livro Testigos silenciosos: historia de objectos de la colección de Yad Vashem (“Testemunhas silenciosas: história de objetos da coleção Yad Vashem”), da então diretora do departamento de artefatos da divisão de museus do Yad Vashem, em Jerusalém.

Para além da formação, estas experiências nos estimulam a pensar em novas iniciativas de trabalho a partir do nosso acervo, considerando aspectos pedagógicos, o acervo, a mediação, as parcerias com outras instituições. Em termos gerais, buscamos ampliar, cada vez mais, o diálogo do museu com a sociedade. Uma dessas iniciativas, já concretizada, é a exposição virtual “O caminho para o Holocausto: 90 anos da ascensão do nazismo”. A partir do acervo disponibilizado pelo nosso departamento de museologia, a mostra contribui para consolidar a visão de que o Holocausto faz parte de um processo social, histórico e político gradual e que não começou com os campos de concentração e extermínio. As condições que possibilitaram o Holocausto são apresentadas por meio de documentos, livros e objetos históricos que estão salvaguardados pelo museu, demonstrando que as últimas etapas do genocídio só foram concretizadas por causa de seus primeiros passos.

De qualquer forma, após participar desta imersão e vivência em Israel, mais uma vez notamos o quanto a nossa instituição avançou nesse ensino do Holocausto e quanto ainda podemos melhorar. Esta percepção ficou mais evidente no momento em que houve trocas significativas entre os participantes e também por ocasião da apresentação de nosso projeto educativo, que visava fomentar a elaboração de propostas pedagógicas para o ensino do Holocausto em diferentes etapas formativas.

Holocausto e espaços de Curitiba

Um exemplo desta ampliação de ações pautadas no acervo e no patrimônio é um projeto que está em andamento por parte do museu e que visa ligar a história de um sobrevivente a espaços da cidade de Curitiba. O objetivo é demonstrar paralelos existentes entre a ressignificação da vida após um trauma e o local onde isso se deu – no caso, a capital paranaense.

O ponto fundamental desse trabalho, ainda apresentado nas redes sociais do museu e que resultará num material impresso compilado e de maior fôlego, é compreender que, seja um local da cidade ou um objeto do acervo, esses elementos, devidamente conservados, respeitados e contextualizados, trazem testemunhos silenciosos que podem ser transmitidos às gerações posteriores. Dessa forma, os que se encontram com esses elementos poderão também, no futuro, imaginar o coração que batia junto com a história, as mãos que o sustentavam e as sensações de seu dono durante e após o Holocausto. Esta é a resposta que damos àqueles que nos perguntam “qual é a relação dos objetos e as histórias por trás deles e um museu histórico”.

Essas ideias reforçam ainda a intenção de demonstrar que o Museu do Holocausto de Curitiba não serve apenas para que recordemos o que aconteceu e não esqueçamos, mas que cada um de nós leve sobre seus ombros a missão constante e a responsabilidade de evitar a repetição de eventos similares em nosso mundo e na sociedade na qual vivemos. Por esta razão, os tristes fatos ocorridos recentemente em nosso país, independentemente dos motivos e do contexto em que aconteceram, nos levam a refletir que a destruição de patrimônios não é somente quebrar objetos, mas sim, destruir as histórias que estão contidas neles.

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