O caminho para o Holocausto: 90 anos da ascensão do nazismo

O Museu do Holocausto de Curitiba lança, a partir de 30 de janeiro, a exposição virtual “O caminho para o Holocausto: 90 anos da ascensão do nazismo”. Mais do que nunca, é preciso alargar a compreensão sobre nazismo e Holocausto para além de Hitler e Auschwitz

O imaginário sobre o Holocausto remete frequentemente a locais e personagens específicos: Auschwitz e Adolf Hitler. Esta associação não é exatamente errada: Hitler foi o líder do regime político que perpetrou um genocídio de enormes proporções, cujo maior complexo de extermínio era Auschwitz-Birkenau. No entanto, acessar o Holocausto pelo seu resultado final pode nos dar a reconfortante (e falsa) sensação do olhar distanciado de uma sociedade que supostamente superou esse tipo de crime. Abordar o Holocausto de forma a-histórica, ou seja, sem olhar o processo, mas direto para a sua culminância, é conveniente por nos permitir não olhar ou minimizar as permanências de ideias e práticas nazistas como processo social nos dias de hoje.

Mais importante do que entender como foi perpetrado o Holocausto é entender como foi possível o Holocausto. Destacando a eminência da data, o Museu do Holocausto de Curitiba lança, a partir de 30 de janeiro, a exposição virtual “O caminho para o Holocausto: 90 anos da ascensão do nazismo”.

Processo social e político

Uma das premissas da exposição é a necessidade de destacar que o genocídio não foi obra de monstros irracionais, mas de um processo social e político. Em 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha. Era o início do regime nazista. Nos anos seguintes, ele e o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (conhecido como Partido nazista) implantaram uma ditadura, perseguiram opositores políticos, provocaram a 2ª Guerra Mundial e assassinaram milhões de pessoas.

O Holocausto, no entanto, não foi um produto somente de lideranças políticas, mas também de cidadãos comuns: pessoas que colaboraram ou consentiram com as atrocidades e, ainda antes de 1933, votaram no partido nazista. Afinal, nas eleições de julho de 1932, esse partido – que até poucos anos antes era uma pequena agremiação de extrema-direita com pouquíssima força eleitoral – obtivera 37% dos votos e formara a maior bancada do parlamento alemão. Apresentando-se para as até então receosas elites políticas como o único capaz de colocar ordem, formar uma coalização de governo com apoio popular e conter o avanço de partidos revolucionários, Hitler obteve sua nomeação para chanceler dentro da normalidade institucional do sistema político alemão.

Condições de possibilidade

Esta não é uma exposição sobre o Holocausto, mas sobre suas condições de possibilidade. A compreensão de como foi possível um crime da magnitude do Holocausto nos leva a um período anterior, no qual ideias e práticas políticas eram gestadas. Mas esse processo gera outras perguntas, que dizem respeito não somente a Europa dos anos 1930, mas ao nosso atribulado presente. O que leva parcelas significativas de uma população a aderir a projetos políticos autoritários e preconceituosos? Em que condições extremistas podem passar de grupelhos para se tornarem atores relevantes da política institucional?

Produção da exposição “O Caminho para o Holocausto: 90 anos da ascensão do nazismo”. Museu do Holocausto de Curitiba

A contribuição de uma exposição virtual não é condensar explicações sobre a ascensão nazista, apresentar novas ou abordar todos os seus aspectos. Em consonância com a metodologia utilizada nas exposições, materiais e atividades do Museu do Holocausto de Curitiba, pretendemos reduzir a escala de observação para então ampliá-la. Peças individuais do acervo servem para contar histórias, pequenos fragmentos do processo que possibilitou a chegada do nazismo ao poder e, consequentemente, o Holocausto.

Processos históricos

Outros processos históricos se cruzam na criação desse contexto. Vejamos alguns exemplos, longe de esgotar o assunto.

O colonialismo europeu, que se expandiu com particular violência para os continentes africano e asiático entre o fim do século XIX e início do século XX, além da devastação que trouxe para as populações locais, serviu como uma espécie de laboratório – ideológico e técnico – para o ideário nazista. Em termos ideológicos, o racismo científico como elemento legitimador do massacre e a noção de um “direito” de expansão para assegurar o desenvolvimento da própria nação; em termos técnicos, o assassinato burocrático e a estrutura de extermínio. No caso da Alemanha, o ressentimento pela perda de suas colônias após a 1ª Guerra Mundial também gerou um desejo de vingança que os nazistas prometeriam atender. O Holocausto não é uma repetição dos massacres coloniais, mas dificilmente seria possível sem estes.

A relação entre nazismo e colonialismo foi e é muitas vezes ocultada. Afinal, aponta que o nazismo esteve ancorado, entre outros aspectos, em práticas realizadas também por outros países, inclusive pelas potências vencedoras da 2ª Guerra Mundial – sem que isso diminua a responsabilidade da Alemanha. As raízes do nazismo não se encontram, portanto, somente em um país.

Outras referências fundamentais para as condições de possibilidade do nazismo também se desenvolveram no século XIX: o racismo científico e o nacionalismo étnico. Extensamente empregado no colonialismo, não tardaria para que o racismo pretensamente científico fosse usado contra populações dentro da Europa, com destaque para os judeus (o antissemitismo, de longa história anterior, ganhava contornos raciais) e os ciganos (Roma e Sinti). Logo, tais ideias se conectaram – e com particular força na Alemanha – a outro conjunto ideológico típico do século XIX europeu: o nacionalismo, que ganhou contornos raciais.

Essas ideias, contudo, só teriam poder político sob determinadas condições locais específicas. Por isso, o nazismo – e os fascismos em geral – como regime só se tornou possível com a 1ª Guerra Mundial e as turbulências da República de Weimar. A derrota militar provocou, ao mesmo tempo, ressentimento pela humilhação, territórios perdidos e indenizações a pagar, mas também uma memória idealizada do período da guerra, pois muitos alemães viam no suposto espírito de união nacional, camaradagem do front e submissão do indivíduo a uma causa comum a expressão da verdadeira “essência nacional”, ameaçada por forças terríveis, personalizadas sobretudo na figura do judeu.

Já durante o período da República de Weimar, o partido nazista aproveitou a sucessão de crises políticas e econômicas (sobretudo a crise de 1929) para acentuar ainda mais o caos social e ao mesmo tempo se colocar como o único capaz de resolvê-lo. Aproveitando-se do anticomunismo e da tradição autoritária das elites políticas alemãs, o nazismo conseguiu se colocar nesse período como um ator político aceito e legitimado de um sistema político frágil e instável.

Ao mesmo tempo, a República de Weimar também foi um período de intensa experimentação social, cultural, política e intelectual. Talvez o maior exemplo disso foi a participação nos mais diversos setores da sociedade alemã justamente daqueles que se tornariam as principais vítimas do nazismo, os judeus. Esse universo cultural que o nazismo procurou destruir é também a prova de que havia outros caminhos a seguir. As condições de possibilidade sobre as quais estamos a refletir não determinam a história, que ainda cabe a escolhas dos homens e mulheres que agem dentro dessas condições.

Outro olhar é preciso

Voltar nosso olhar para a ascensão do regime nazista – não por ignorar os seus crimes, mas, pelo contrário, para entender como foram possíveis – leva ao menos a dois importantes desdobramentos.

Em primeiro lugar, entender que o Holocausto não foi um evento a parte da história. Ele se relaciona com outros processos. E, enquanto o nazismo se tornou algo ligado a uma ideia de mal absoluto, criminalizado e combatido na maior parte do mundo (embora ainda sob risco diante do aumento de grupos neonazistas), muitas de suas condições de possibilidade permanecem.

A outra decorrência é a importância de nos mantermos alertas para essas condições, frequentemente minimizadas ou normalizadas, para nos anteciparmos a crimes mais graves. Mais do que nunca, é preciso alargar a compreensão sobre nazismo e Holocausto para além de Hitler e Auschwitz. Limitar a compreensão a esses aspectos serve para não discutir o nazismo como processo social e, dessa forma, manter intactas suas condições de possibilidade. Os fascismos foram e são fruto de ideias e práticas humanas social e historicamente construídas. Eles não eram e não são inevitáveis. Compreender sua historicidade pode nos fornecer ferramentas para o presente e o futuro.

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