Lá no interior de Santa Catarina, onde cresci, se define por “bunda mole” aquelas pessoas cujas nádegas estão pouco usadas devido ao tempo inutilizado. Bunda mole, sobretudo, é também adjetivo para pessoa de ética pouco corajosa, que não faz o que é preciso ser feito. “Vai lá e não tenha medo de dizer o que pensa, não seja bunda mole.” É uma frase bem usada por lá.
Mas o que precisa ser feito? Esta pergunta tem respostas infinitas, entretanto, o que une à todos atualmente está no nível da pergunta e não da resposta: somos péssimos em matéria de prazer e de desejos, pois sucumbir à ditadura da felicidade constante, nos permitimos alcançar apenas prazeres medíocres. Estamos com o músculo do desejo enfraquecido, queremos poupar tudo que é ruim e nos proteger das tristezas a todo custo. O resultado é que os sonhos andam cada vez mais pequenos.
A estética pode ajudar nessa hora, pois um juízo estético permite fundar uma ética que nos conduza para conhecimentos mais aprofundados do mundo e de nós mesmos. Por exemplo, dizemos para uma criança “que feio!” como recurso para ensinar o que é certo e errado. Da mesma forma, não podemos saborear um vinho sem o aproveitamento estético por meio da cultura, pois o vinho não faz sentido se não soubermos diferenciar as diferentes cepas de uvas e as nuances derivadas dos territórios geográficos de onde provém.
O psicanalista e escritor Contardo Calligaris dizia que precisamos atualmente ser mais hedonistas, mas não no sentido superficial da palavra, mas naquele hedonismo traduzido como projeto sério e dedicado de atenção ao mundo. Assim como quando nos dedicamos a contemplar uma obra de arte, devemos nos lançar no projeto de viver com atenção com a própria vida e desejos. Tal projeto requer um trabalho sistematicamente contínuo para tornar nossas escolhas pessoais interessastes. Se Calligaris tivesse nascido lá no interior talvez concordasse comigo que viver uma vida fascinante não é pra gente bunda mole.
Mas por quê? Os bundas moles também não tem direito à felicidade? Sim, eles têm, mas o desejo pede um preço para ser concretizado e sem esse pedágio fica difícil.
A característica de um desejo funcional é seu caráter de desejar, um desejo desejante, tal como um coração a bater, pulsante. Ele, o desejo, também não deve se encarnar em objetos específicos, apenas se traduzir por eles, torná-los em suas equivalências contigentes.
Tal é o preço do desejo: saber o que se quer justifica o quanto pagamos. Pagamos com gosto o preço alinhado com o que queremos. Mas isso só se levarmos pra casa o que nós queríamos comprar.
O desejo é um processo experimental, um fazer de todo dia, um experimento com a vida. Fazemos com que sejamos o cientista e o rato de laboratório ao mesmo tempo. Queremos ir do ponto A ao ponto B, mas não sabemos onde está o ponto B. Não há planejamento e isto é a essência do processo. Perder de vista esse caráter processual pode significar engessar o desejo, pois tudo que não se pareça com o plano é descartado. É nessa hora que ciência e arte dividem o mesmo lugar, que é o da busca por um objeto desconhecido.
O poeta Manoel de Barros escreveu: “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras —liberdade caça jeito”. Ou seja, não basta saber desejar, é preciso fazer por onde, caçar as traduções para o desejo equivaler. O psicanalista francês Jacques Lacan falava sobre um saber fazer especificamente ligado ao “se virar”, uma saber fazer com inventividade para achar o jeito de fazer tradução ao desejo mesmo quando as coisas não saem como planejado.
Olhemos um pouco agora para o cenário político atual. Vemos o apagão da sensibilidade, a rebeldia contra a ciência e mentes medrosas fugindo para o sectarismo.
O filósofo Franco Berardi, outro Italiano, comenta que o novo fascismo resulta justamente da implosão dos desejos, da tentativa de manter sobre controle o pânico e a raiva depressiva da impotência. Desta forma o novo fascismo seria uma reação histérica à depressão manifestada pelo fracasso de uma economia que coloca toda a culpa no desempenho pessoal. Berardi também diz que para sermos políticos hoje é preciso sermos estéticos, em um sentido amplo, pois a estética não é apenas entender a arte, é também entender a percepção psíquica da dor e do desejo.
O neofascismo não tem coragem de experimentar a vida fora do quadrado, da linha, do armário. O neofascismo não consegue aguentar a impotência da experiência. O neofascismo não entende a dor porque ignora a estética. O neofascismo cultiva a pança, nunca o desejo. Um neofascista é um bunda mole.
Para ir além
Sobre o/a autor/a
Guilherme Zawa
Escritor, psicanalista e artista visual. Tem um jeito agradável para tratar de coisas sérias. [email protected]