Paga pra entrar?

Sobre se ter amigos/hermanos

Estava perdido em Buenos Aires. Daí entrou o xaxado. Depois o forró. Saiu o baião e veio o tango, logo mais o bandoneón. Então todos se calaram para a peça de teatro. Finalizou com a banda de rock cantando sobre amores latinos. O bar só aceitava dinheiro mas eu só tinha cartão. Entrei igual. Reconheci uma pessoa de um outro bar ‘ei olha aqui, eu tenho uns amigos que também são brasileiros’. Contato imediato. Me ofereceram vinho. Bebi ao som de tango. Novos velhos amigos. Ainda não sei o nome deles, mas até o final da noite vamos estar trocando os contatos para fazer alguma coisa durante a semana.

Uma moça dança com sapatos vermelhos sem se importar. Os novos velhos amigos dizem: ‘vamos pra pista’. Eles são do tipo que aparentam preferir discutir mitologia grega ou política ao dançar. Errado. Eles bailam e filosofam.

Está frio. Entre uma taça e outra as pessoas pedem uma xícara de chá quente. Esta casa deve ter uns cem anos no mínimo. Pode ter sido uma mansão ou convento. Cada rolha aberta é uma oração.

Continuo sem dinheiro e perdido, mas agora levemente embriagado. A banda de rock canta algo sobre a vida, sobre ter vinte anos. Eu não tenho mais vinte anos. A banda se conecta com meus vinte anos. Acho que não me divertia assim quando tinha menos. Demais minhocas na mente e grilos sobre viver. Diferente de agora. Aqui neste momento na cabeça só tenho a música que toca, o frio pra tomar chá, o espanhol portenho e toneladas de vinho.

Estou na pista embriagado sem dinheiro e cheio de amigos. A moça de sapatos vermelhos improvisa uma coreografia para o tango. Um pintor de macacão tipo mecânico está pintando no meio do salão. Ele parece imitar um pintor americano, mas o que importa, ele está fazendo o que gosta e você talvez não esteja.

Falamos entre amigos sobre ser brasileiro. Sobre sofrer com indignação. Doemos todos juntos e também lembramos de amar sem fronteiras. Da besteira que é colocar fronteiras. Repassamos os limites simbólicos que carregamos conosco no coração. Nos lembramos de como é preciso muito amar para superar isso.

São três da manhã e o bar vai fechar. Uma menina desconhecida me pergunta ‘vamos dividir uma garrafa de vinho?’. Não posso, não tenho dinheiro, estou perdido e já estou bêbado.

Muita gente na rua. Mulheres sozinhas. Na paz. Me pergunto o porquê de não ter vindo morar aqui antes. A cidade é o encontro da vida e do desejo que se permitem estarem

perdidos e encontram nas ruas o espaço seguro para vir a ser parte de uma experimentação individual.

A moça de sapatos vermelhos vai embora de bicicleta. Acompanho os amigos até um quiosque para comprar uns chocolates para rebater o álcool. O vinho é barato demais para ser recusado. Marcamos de escutar um jazz semana que vem.

Não estava mais perdido, estava achado — dançando rock, tango e xaxado.

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