Sobre a censura – sem censura

Francisco Camargo conta a rocambolesca história da proibição de uma peça de Dias Gomes, que mais tarde faria sucesso na TV

O Berço do Herói, peça de Dias Gomes, deveria ter sido encenada pela primeira vez em 1965. Deveria. Por conta da ditadura civil/militar, foi proibida duas horas antes da estreia. Mais tarde, com o nome de Roque Santeiro, quase virou novela, mas também foi censurada. Toda essa perseguição tinha um motivo: desconstruía um mito (o herói militar). Somente em 1985 a novela pôde ir ao ar, com sucesso e personagens inesquecíveis, entre eles Sinhozinho Malta e a viúva Porcina.

O lado pouco conhecido do episódio (o autor diante dos censores) saiu publicado, com texto do próprio Dias Gomes, na Revista Civilização Brasileira, número 4, de setembro de 1965.  

Trechos, atualizando a grafia:

Cerca de três horas da tarde, 23 de julho, ano 2 do Desastre. No imenso e soturno gabinete do Superintendente da Polícia Judiciária do Estado da Guanabara, três homens afundados em graves poltronas. Dois falavam, o terceiro apenas ouvia, ar impenetrável. Diálogo:

– A peça foi proibida.

– Mas o texto não foi aprovado pela Censura?

– Foi.

– Por que então a proibição?

– Porque o texto sofreu alterações durante os ensaios.

– Mas isto é comum.

– Mas não pode. Não está de acordo com o texto aprovado.

– Podemos levar então o texto aprovado?

– Não.

– Por quê?!

– Porque fizeram alterações no texto aprovado.

– Suprimimos as alterações. Levamos o original, sem mudar uma vírgula. Podemos?

– Não.

– Por quê?!

– Porque o original foi alterado.

Nem Kafka, nem Ionesco, colaboraram nesse diálogo. Ele foi travado, absolutamente de improviso, entre o Sr. Sales Guerra, superintendente da Polícia Judiciária e este modesto bolador de estórias teatrais. O terceiro homem, o que não falava, era o próprio chefe da Censura Estadual, Sr. Asdrúbal José Júnior.

– Os senhores infringiram o artigo 41 do Regulamento.

– Perdoe-me a ignorância, mas não conheço esse artigo. O senhor poderia talvez esclarecer-me sobre o seu texto.

– Que texto?

– O texto do artigo 41.

– Ah, não sei. Também não sou obrigado a conhecer todos os artigos de todas as leis.

– Mas o Chefe da Censura deve saber.

O Sr. Asdrúbal mostrou-se surpreso.

– Eu? Por quê?

– Porque o senhor é o Chefe da Censura.

– Quem aplica o artigo é o censor, no parecer.

– E o parecer? Posso ver o parecer?

– Não. O parecer é confidencial.

– Mas eu preciso saber de que me acusam.

– O senhor é acusado de ter infringido o artigo 41, não basta?

Achei que não bastava. Na véspera, às cinco horas da tarde, minha peça O Berço do Herói fora proibida pela Censura do Estado. A medida nos deixara perplexos porquanto os originais enviados à Censura com quarenta e cinco dias de antecedência haviam obtido total aprovação. Como é de praxe, os censores liberaram o texto solicitando um ensaio geral para liberação definitiva do espetáculo.

Esse ensaio realizou-se um dia antes da estreia (que não houve). Ao terminar, indaguei se o espetáculo estava aprovado.

– Não podemos dizer nada.

– Como?!

– Só amanhã.

– Mas amanhã é o dia da estreia. Se há algum corte, precisamos saber com antecedência.

O censor, aliás, censora, olhou para os quatro cavalheiros de pedra (não falavam, não sorriam, acho que nem sequer pensavam) e repetiu:

– É, mas só amanhã.

Pelo regulamento, quando a Censura vai assistir ao ensaio geral é obrigada a declarar, imediatamente após o mesmo, se há ou não cortes a fazer e quais esses cortes. Mas hoje em dia, neste país, as leis e regulamentos só valem quando são a favor daqueles que os manipulem. No dia seguinte, veio a proibição. Não foi determinada pelos censores que, em seus relatórios, aprovaram o espetáculo.

A proibição foi determinada pelo próprio chefe do Serviço de Censura, que não leu o texto e muito menos foi conferir o ensaio.

Para ir além

O Berço de Herói, Dias Gomes, 154 páginas.

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