O Berço do Herói, peça de Dias Gomes, deveria ter sido encenada pela primeira vez em 1965. Deveria. Por conta da ditadura civil/militar, foi proibida duas horas antes da estreia. Mais tarde, com o nome de Roque Santeiro, quase virou novela, mas também foi censurada. Toda essa perseguição tinha um motivo: desconstruía um mito (o herói militar). Somente em 1985 a novela pôde ir ao ar, com sucesso e personagens inesquecíveis, entre eles Sinhozinho Malta e a viúva Porcina.
O lado pouco conhecido do episódio (o autor diante dos censores) saiu publicado, com texto do próprio Dias Gomes, na Revista Civilização Brasileira, número 4, de setembro de 1965.
Trechos, atualizando a grafia:
Cerca de três horas da tarde, 23 de julho, ano 2 do Desastre. No imenso e soturno gabinete do Superintendente da Polícia Judiciária do Estado da Guanabara, três homens afundados em graves poltronas. Dois falavam, o terceiro apenas ouvia, ar impenetrável. Diálogo:
– A peça foi proibida.
– Mas o texto não foi aprovado pela Censura?
– Foi.
– Por que então a proibição?
– Porque o texto sofreu alterações durante os ensaios.
– Mas isto é comum.
– Mas não pode. Não está de acordo com o texto aprovado.
– Podemos levar então o texto aprovado?
– Não.
– Por quê?!
– Porque fizeram alterações no texto aprovado.
– Suprimimos as alterações. Levamos o original, sem mudar uma vírgula. Podemos?
– Não.
– Por quê?!
– Porque o original foi alterado.
Nem Kafka, nem Ionesco, colaboraram nesse diálogo. Ele foi travado, absolutamente de improviso, entre o Sr. Sales Guerra, superintendente da Polícia Judiciária e este modesto bolador de estórias teatrais. O terceiro homem, o que não falava, era o próprio chefe da Censura Estadual, Sr. Asdrúbal José Júnior.
– Os senhores infringiram o artigo 41 do Regulamento.
– Perdoe-me a ignorância, mas não conheço esse artigo. O senhor poderia talvez esclarecer-me sobre o seu texto.
– Que texto?
– O texto do artigo 41.
– Ah, não sei. Também não sou obrigado a conhecer todos os artigos de todas as leis.
– Mas o Chefe da Censura deve saber.
O Sr. Asdrúbal mostrou-se surpreso.
– Eu? Por quê?
– Porque o senhor é o Chefe da Censura.
– Quem aplica o artigo é o censor, no parecer.
– E o parecer? Posso ver o parecer?
– Não. O parecer é confidencial.
– Mas eu preciso saber de que me acusam.
– O senhor é acusado de ter infringido o artigo 41, não basta?
Achei que não bastava. Na véspera, às cinco horas da tarde, minha peça O Berço do Herói fora proibida pela Censura do Estado. A medida nos deixara perplexos porquanto os originais enviados à Censura com quarenta e cinco dias de antecedência haviam obtido total aprovação. Como é de praxe, os censores liberaram o texto solicitando um ensaio geral para liberação definitiva do espetáculo.
Esse ensaio realizou-se um dia antes da estreia (que não houve). Ao terminar, indaguei se o espetáculo estava aprovado.
– Não podemos dizer nada.
– Como?!
– Só amanhã.
– Mas amanhã é o dia da estreia. Se há algum corte, precisamos saber com antecedência.
O censor, aliás, censora, olhou para os quatro cavalheiros de pedra (não falavam, não sorriam, acho que nem sequer pensavam) e repetiu:
– É, mas só amanhã.
Pelo regulamento, quando a Censura vai assistir ao ensaio geral é obrigada a declarar, imediatamente após o mesmo, se há ou não cortes a fazer e quais esses cortes. Mas hoje em dia, neste país, as leis e regulamentos só valem quando são a favor daqueles que os manipulem. No dia seguinte, veio a proibição. Não foi determinada pelos censores que, em seus relatórios, aprovaram o espetáculo.
A proibição foi determinada pelo próprio chefe do Serviço de Censura, que não leu o texto e muito menos foi conferir o ensaio.
Para ir além
O Berço de Herói, Dias Gomes, 154 páginas.