O “show de horrores” da Prevent Senior expõe a fragilidade da bioética brasileira

Depoimento de médico que trabalhava em hospital da empresa de saúde sobre o “kit covid” escancara uma grave situação

Quem acompanhou quinta-feira (7) o depoimento do médico Walter Correia, ex-funcionário da Prevent Senior, deve ter ficado em estado de choque com as declarações e evidências apresentadas à CPI da Covid. De todo o “show de horrores” que tem se revelado desde que a CPI iniciou, o pior, sem dúvida, é o caso envolvendo a empresa de saúde paulista, que, inclusive, tem escritório em Curitiba. Os relatos de médicos dos hospitais do grupo de que teriam sido forçados a receitar remédios sem comprovação científica para tratamento da doença, ferem diretamente o princípio ético médico e científico. Se comprovadas as acusações, teremos constatado possivelmente o maior escândalo bioético brasileiro de desrespeito a normas, acordos internacionais, ao código de ética médico e à vida.

O uso de medicamentos ou tratamentos de pacientes em caráter experimental é regulado por protocolos legais no Brasil. Os procedimentos são adotados para garantir o respeito ao ser humano, evitando danos maiores à sociedade. No caso da Prevent Senior, os relatos de pacientes e médicos é de que não havia minimamente o consentimento dos mesmos para uso de remédios como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina. Ou seja, o chamado “kit covid” foi distribuído indiscriminadamente como solução para infectados sem que os mesmos ou seus familiares fossem comunicados.

O chamado “kit covid” foi distribuído indiscriminadamente como solução para infectados sem que os mesmos ou seus familiares fossem comunicados

A medida não só fere ao direito individual de consciência do paciente sobre o que está sendo ingerido e suas consequências para o organismo, mas também representa uma afronta à ciência. Com exceção de alguns poucos artigos publicados em revistas com critérios questionáveis, a grande maioria dos pesquisadores e instituições em diferentes lugares do mundo não atestaram a eficiência do “kit covid”. Ainda assim, a rede de hospitais distribuiu os remédios. Estou mais propenso a acreditar em interesses econômicos do que políticos, ao contrário do que preferem acreditar alguns grupos. Quem investiga o caso precisa perguntar qual a diferença do custo de internamento para beneficiários do plano de saúde e do “kit covid”.

Quem investiga o caso precisa perguntar qual a diferença do custo de internamento para beneficiários do plano de saúde e do “kit covid”

A aprovação de pesquisas com seres humanos é regulada internacionalmente pela Declaração de Helsinque, aprovada pela Associação Médica Mundial em 2000 e do qual o Brasil é signatário. Segundo este documento, “o desenho e a realização de cada procedimento experimental envolvendo seres humanos devem ser claramente discutidos no protocolo experimental. Esse protocolo deve ser submetido à análise, com comentários, orientações e, quando apropriado, à aprovação de um comitê de ética médica especialmente indicado, que deve ser independente do pesquisador e do patrocinador de estudo ou qualquer outro tipo de influência indevida”.

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), principal órgão de avaliação ética em protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil, não publicou nada a respeito. Coincidentemente, o site traz esta semana um informe de que “todos os dados dos protocolos de pesquisa em análise estão sob sigilo, em razão do compromisso de confidencialidade, respeito à proteção da individualidade, observância aos direitos e obrigações relativos à propriedade industrial”. Não há qualquer menção ao caso da Prevent Senior.

Em nota enviada à coluna É Ciência, a Prevent Senior se defende insinuando que as denúncias seriam resultantes de uma tentativa do grupo de médicos representados pela advogada Bruna Mendes dos Santos Morato de conseguir um acordo milionário. O texto também diz que a empresa dos irmãos Eduardo Parras e Fernando Magrão “sempre respeitou a autonomia dos médicos, nunca demitindo profissionais por causa de suas convicções técnicas”. A empresa justifica seu sucesso com dados que apontam um índice de mortos por Covid abaixo da média, mas não explica porque atuou sem autorização do Conep ou sem o consentimento de pacientes.

Para piorar

O relato e os áudios de Walter Correia na CPI, no entanto, apontam para uma prática frequente de assédio moral aos médicos e funcionários, por meio de coerção e difusão de dados incorretos para induzir os mesmos a receitarem o “kit covid”. Além disso, também seriam práticas recorrentes a remoção de pacientes da UTI para o acompanhamento com medidas paliativas, que são menos urgentes e que podem ter resultado em mais mortes. Outro dado estarrecedor é a adulteração de atestados de óbito, como ocorreu com a mãe do empresário Luciano Hang e com o pediatra e toxicologista Anthony Wong, defensor do “kit covid”, para omitir que as mortes haviam ocorrido por consequência do coronavírus, o que atestaria publicamente a ineficácia dos remédios.

Quantos brasileiros tomaram algum destes remédios por conta própria, baseados na recomendação de familiares, amigos ou conhecidos que receberam a receita médica?

O problema é que nestes quase 2 anos de pandemia não foi apenas a Prevent Senior que recomendou o uso de remédios sem eficácia comprovada cientificamente. Quantos médicos e hospitais fizeram o mesmo? Quantos brasileiros tomaram algum destes remédios por conta própria, baseados na recomendação de familiares, amigos ou conhecidos que receberam a receita médica?

Uma evidência de que a prática foi generalizada de forma inconsequente, foi a posição do Conselho Federal de Medicina (CFM) que defendeu o chamado tratamento precoce com cloroquina e hidroxicloroquina. Em nota publicada no site do CFM, o presidente Mauro Luiz Ribeiro chama de “politização criminosa” os que atacaram o uso de remédios para tratamento e prevenção e defende a “autonomia médica” para justificar a posição. A entidade, agora, está sendo processado pela Defensoria Pública da União por danos morais coletivos.

A situação, portanto, é muito mais grave. Milhares de brasileiros foram expostos a testes sem que tivessem conhecimento das consequências do uso destes medicamentos, para não falarmos dos casos de mortes ou sequelas comprovadas pelo uso de hidroxicloroquina, cloroquina e ivermectina (lembram da paciente que morreu após nebulização de cloroquina?). Ou quantos dos que acreditaram que estes remédios poderiam ser eficazes continuaram suas vidas normalmente e foram infectados e espalharam o vírus acreditando que estavam imunizados?

Se constatadas as denúncias contra a Prevent Senior, será escancarada uma grande fragilidade na bioética brasileira. E aí, a aplicabilidade da tal autonomia médica precisará ser seriamente revista, sobretudo na rede privada de saúde. 

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima